10 outubro 2019

ataque terrorista em Halle

Para terem uma ideia de como o atentado terrorista neonazi a uma sinagoga foi hoje tratado na televisão alemã, traduzi (muito a correr) o noticiário Heute Journal de 9.10.2019, que podem ver aqui.

ADENDA: dado que este post continua a ser partilhado, incluo aqui o vídeo já com legendas em português




[0:18 - Reportagem, voz off]
Leipzig, esta noite. Trinta anos depois da noite em que tudo podia ter acontecido, quando 70.000 pessoas temeram que as forças armadas estatais atirassem sobre os manifestantes - o que não aconteceu. A revolução pacífica tornou-se imparável.

[0:43 - Claus Kleber]
Boa noite. No dia que devia ser para celebrar o melhor da Alemanha, foi o pior da Alemanha que dominou as notícias: dois mortos, e pelo menos dois feridos em Halle an der Saale. O plano do autor do atentado era muito pior: o seu alvo era a comunidade judaica de Halle, na sua sinagoga, na festa mais importante do ano judaico, desprotegida e à mercê do assassino e da sua arma automática.

[01:13 - Imagens do ataque, voz off]
A meio do dia ouvem-se tiros em Halle. No bairro St. Pauli, que normalmente é muito tranquilo, uma mulher é morta a tiro perto da sinagoga. Dentro do edifício encontram-se entre setenta e oitenta pessoas. Os judeus comemoram hoje a sua festa maior, Yom Kipur, a festa da reconciliação.

[01:34 - Testemunha]
Atirou primeiro com a caçadeira, depois pegou na outra, que tem um som diferente. (...) Parecia equipado como um polícia, com o equipamento completo de combate, capacete, roupa de protecção, caçadeira, arma automática, granadas que atirou contra as paredes...
- Também ouviu explosões?
- Sim.

[01.56 - Imagem aérea]
A sinagoga é o alvo do ataque. O atacante, um alemão de 27 anos, tenta penetrar no edifício, e filma os seus actos. No vídeo, que decidimos não exibir, nega o Holocausto, fala com desprezo sobre estrangeiros e mulheres. Depois do fracasso deste ataque, mudou de alvo, dirigindo-se a uma loja de döner kebab a cerca de 600 m da sinagoga. Aqui, um homem é morto a tiro.

[02:22 - Porta-voz da polícia de Halle]
O atacante fugiu de carro, saiu de Halle. A polícia conseguiu detectar o carro e prender o homem.

[02:32 - Reportagem, voz off]
Também há disparos numa localidade vizinha, Landsberg. A polícia não confirma uma ligação aos acontecimentos em Halle, mas durante toda a tarde fala de uma "situação de amok". A polícia faz várias buscas domiciliárias em Landsberg. Entretanto o caso já está nas mãos do Procurador-Geral Federal, e a ministra do Interior publica um comunicado: "o que sabemos neste momento aponta para, pelo menos, um atentado de carácter antisemita. Segundo a avaliação do Procurador-Geral Federal, há indícios suficientes de uma possível motivação de extrema-direita."
O presidente de Sachsen-Anhalt interrompeu uma viagem ao estrangeiro e aterrou em Berlim ao anoitecer.

[3:14 - Reiner Haseloff, CDU]
Duas pessoas foram assassinadas, e o objectivo era matar muitas mais. É horrível ter de descrever um acto destes. Para mim é horrível ver esta motivação anti-semita que já se revela, saber que uma comunidade religiosa, concidadãos nossos, não se sentem em segurança, e que alguém os queria matar.

[3:41 - Reportagem, voz off]
A polícia fala de um único atacante, com motivação de extrema-direita, que queria entrar na sinagoga para provocar um banho de sangue.

[3:51 - Claus Kleber]
Já aqui se referiu a existência de um vídeo do ataque. O atacante - supõe-se que à semelhança de quem lhe serviu de modelo - transmitiu os ataques live na internet. Na redacção vimos este vídeo e  analisámos os factos que contém, mas decidimos não mostrar absolutamente nada dele. A vontade de se encenar a si próprio e de auto glorificação é também um dos motivos para estes actos de violência, e não queremos contribuir para isso. Está fora de causa!

[4:22 - Jornalista no exterior ]
- Annegret, ao longo do dia não era certo se se tratava apenas de um ou mais atacantes. Agora já se sabe?
- Ainda não há confirmação oficial, mas tudo indica que se trata de um homem isolado. Pode ter acompanhantes, pessoas que estavam ao corrente do seu plano, mas sobre isso ainda não sabemos nada. O vídeo que ele fez e está agora a ser analisado pela polícia mostra que não tinha mais ninguém com ele, ninguém a usar armas e a atacar a sinagoga. É um alemão de 27 anos, de Sachsen-Anhalt, que vive em Halle.
- Hoje vimos imagens de Halle. A comunidade judaica dá nas vistas? E a sinagoga?
- A sinagoga fica perto do centro antigo de Halle, e é bastante visível. É uma rua aberta, a sinagoga não está escondida. Uma habitante do bairro contou-nos há pouco que passa por lá frequentemente de bicicleta e nunca viu polícia a proteger o edifício. Pergunta-se porque é que justamente hoje, o dia mais importante da comunidade judaica, não havia ali polícia - de momento, esta ausência é objecto de grande crítica.

[6:25 - Claus Kleber]
Ontem à noite teve lugar em Berlim uma conferência dos serviços de segurança e do ministério da Justiça sobre os riscos da extrema-direita e do anti-semitismo, com o título "Justiça e sociedade contra a violência de extrema-direita". H. Funke fez a palestra principal.
- Boa noite, prof. Funke. A partir do que sabemos neste momento, que conclusões pode tirar sobre o contexto e as motivações do atacante?
- Antes de mais, um anti-semitismo assassino. No seu cerne está a ideologia da extrema-direita e dos neonazis na Alemanha e no mundo inteiro, como há um ano em Pittsburgh com um terrível resultado, vinte pessoas de religião judaica assassinadas, ou em Christchurch, onde atacaram uma mesquita e mataram a tiro cerca de cinquenta pessoas. É este o cerne.
- Este atacante, depois de não conseguir entrar na sinagoga, foi para outro lugar, para uma loja de döner, e matou um homem que em princípio não seria judeu. O que parece errático e tresloucado.
- Aparentemente, sim. Mas o cerne é monstruoso: é a misantropia que se revela em ideologias como o anti-semitismo, ou na raiva contra refugiados, ou na raiva à loja de döner e aos árabes.
- Como é que uma sociedade se pode proteger de um delírio que começa por ser praticamente invisível mas acaba por desembocar nesta violência assassina?
- De duas formas: os serviços de segurança - e ontem falou-se muito sobre isso - têm de estar mais conscientes da existência de novos riscos, redes que estão profundamente ramificadas, e em parte são terroristas, ou, como é provavelmente este caso, que trabalham com desvios de comunicação, influência e actos de imitação. Essa é uma questão. Mas a outra questão é que temos de acabar com o discurso de ódio, por exemplo o de um Björn Höcke, que no seu livro programático afirma que quer expulsar milhões de pessoas deste país para fora, e o quer fazer com - cito - "uma crueldade bem doseada, bem afinada". Ou seja: com sadismo. Isto não pode ser, não se pode admitir no espaço público, nos media. Isto destrói não apenas o sentido da moral, mas também a sociedade.
- Se bem entendi, coloca esta acção de um homem isolado em Halle an der Saale, ou seja, na província alemã, no mesmo nível de ataques que vão da Austrália à Noruega.
- É o lado negativo da internet. Uma pessoa vê, e encontra elementos que quer imitar. Este caso lembra Christchurch, mas lembra também Pittsburgh.
- A sociedade vai conseguir resolver o problema desta Hidra e das suas muitas cabeças?
- Ainda não é uma Hidra. Mas está a crescer. Temos o caso do 1 de Setembro de 2018 em Chemnitz, quando houve um encontro partidário nacional que juntou militantes da extrema-direita e hooligans, onde alguns gritaram "Hitler", temos o grupo Revolution Chemnitz, e temos o assassinato de um político, o primeiro cometido pela extrema-direita na História da República Federal Alemã. São tempos perigosos, e temos de lutar contra isso. Ambos: os serviços de segurança, e a sociedade. Só assim conseguiremos controlar o problema, e espero que isso aconteça.

[10:37 - Claus Kleber]
Em situações de perplexidade como estas, os símbolos e os gestos têm um grande significado. A chanceler esteve hoje com a comunidade da Grande Sinagoga de Berlim.

[11:00 - Entrevista com Josef Schuster,  representante do Conselho Central Judaico da Alemanha]
- Herr Schuster, devíamos ter previsto que isto iria acontecer?
- É certo que temos vindo a alertar para um certo temor dos desenvolvimentos e desvios na direcção da extrema-direita, e de um extremismo com potencial de violência. No entanto, não contava com um ataque concreto a uma sinagoga como o que hoje aconteceu.
- Será que nós, a sociedade alemã, o governo alemão, subestimámos alguma coisa, ou falhámos algo nos últimos tempos?
- Já chamei a atenção para o que tem acontecido ultimamente: há linhas vermelhas que estão a ser ultrapassadas, ideias que as pessoas tinham mas não se atreviam a dizer em público começaram a ser aceitáveis. E às palavras seguem-se actos - isto é um facto conhecido, que hoje, infelizmente, se verificou mais uma vez. 
- Frases dessas têm sido alvo de protestos claros por parte do governo, dos media, da maior parte da sociedade, mas aparentemente não está a ser suficiente.
- Não está a ser suficiente, e a isso junta-se um elemento novo em Halle, que foi o que mais me chocou: o atacante não conseguiu entrar na sinagoga graças a uma porta resistente, mas em dias como estes deve haver forças da polícia a proteger as comunidades judaicas. O que é algo que lamento, mas se tivesse estado ali um carro da polícia podia ter-se evitado pelo menos a segunda morte.
- Perguntas que os media e a opinião pública com certeza se farão nos próximos dias. Para além disso: o que é que a sociedade terá de fazer no dia seguinte a este atentado?
- A sociedade tem de fazer algo que é independente deste atentado, e que é fácil - mas se calhar muito difícil. É o conceito de coragem civil. Começa no nível mais simples: quando num café alguém fizer afirmações anti-semitas, racistas, xenófobas, alguém tem de se erguer e dizer "reparaste no que acabaste de dizer? pensas mesmo isso que disseste? parece-te que o que disseste é aceitável?" - é a isto que chamo coragem civil. E se for claro que estas afirmações, que estas opiniões são rejeitadas, é um passo muito importante.

[14:36 ]
O noticiário passa de novo para Leipzig, onde as pessoas celebram os 30 anos do início da revolução pacífica que levou à queda do muro um mês depois. Informam que o horror de Halle esteve no centro dessas celebrações. Mas não vou traduzir, porque isto já vai muito longo.

4 comentários:

Gato Aurélio disse...

obrigada pelo trabalho que teve na tradução.
Maus vão os tempos em que a polícia tem que vigiar os locais de culto para segurança dos seus fiéis...
Nem consigo imaginar se, em Portugal, fosse necessário vigiar as Igrejas católicas todos os domingos... é aterrador :-(

Helena Araújo disse...

Pensava que a polícia já fazia isso em todos os edifícios públicos ligados a judeus.
O grave não é que o faça. É ter de o fazer, 70 anos depois do Holocausto. Não aprendemos nada?

Unknown disse...

Um trabalho muito digno deste canal de tv, que se propõe começar (ou continuar) a redimir as tradicionais (?) posições egoístas e narcisistas do Velho Mundo. De salientar a opção de não reproduzir o vídeo do assassino, revelando um padrão de comportamento muito superior ao dos "media" comuns, que muitas vezes não se importam de chafurdar na mais vil imundície, credível ou não, apenas para se promoverem ("promoverem"?? - ou venderem?). Um modelo a seguir, em prol da luta contra a xenofobia e quejandos, na qual TODOS temos o dever de nos empenhar.
Maria Antónia Rocha Campos

Helena Araújo disse...

Também pensei nisso: um modelo a seguir.
Gosto particularmente da voz embargada dele ao rematar com o "isso está fora de causa!"