Um amigo falava-me há dias do filme Blow Up, que vi há muitos anos, e que me deixou a ideia de um mundo de disfarce, ilusão, inconsequência, indiferença. Tudo se dilui e perde. Não interessa procurar a verdade com muito afinco – quanto mais se foca, mais desfocado fica.
Lembro-me muitas vezes da cena final. A sintonia do faz-de-conta, que lembra a rábula de O Rei Vai Nu. Talvez me lembre tanto dessa cena pela sua carga ameaçadora: somos capazes de aderir a ilusões colectivas e acreditar realmente no que pensamos estar a ver.
Fez ontem oitenta anos que começou a segunda guerra mundial (os EUA têm outra opinião quanto à data de início da guerra mundial, mas adiante). Li o discurso que Hitler proferiu perante o Parlamento alemão, e vi alguns filmes privados, feitos pelas famílias alemãs durante esse período (1 e 2). Hitler atira para o campo bolas de ténis inexistentes e o pessoal põe braçadeiras com o símbolo nazi e levanta o braço direito em uníssono.
Há um Rolls-Royce no Blow Up. Volta e meia vejo um carro desses parado na minha rua. Perguntei a um vizinho se era dele, e respondeu: “não é o meu tipo de carro”. Pois não, ele é mais Ferrari...
Há dias, a passear o cão, parei para cumprimentar duas vizinhas que estavam à conversa. Uma delas é casada com um empresário que, devido a algumas falcatruas, foi condenado a dois anos de prisão com pena suspensa. A mulher não sabia de nada, coitada. Por sorte não perderam a casa, porque estava no nome dela - mas ela não sabia de nada, coitada.
Estavam a falar de outro vizinho da mesma rua, que agora está preso. Oito anos. Era o chefe da máfia dos cuidados domiciliários a idosos. A que não sabia de nada, coitada, dizia: “ele fez uma grande asneira. Só por causa desse erro é que foi preso”. “E que fez ele?”, perguntamos nós. “Arranjou uma colaboradora que não era de confiança, e que foi fazer queixinhas à polícia”.
Custa-me muito aceitar sequer a possibilidade de haver gente assim tão descaradamente fora da lei. Nem é viver fora da lei - é mesmo não saber que a Lei existe, e muito menos para que serve.
Fui ao Konzerthaus ouvir a nona de Dvořák sob a batuta de Christoph Eschenbach. Não foi o melhor concerto da minha vida, mas comovi-me no fim do segundo andamento.
O público que lá estava era muito diferente do da Filarmonia. Será ainda sinal da diferença entre a Alemanha ocidental e a oriental que, 30 anos depois, continua a notar-se até nestas salas de concerto que não distam mais de 3 km uma da outra? Enquanto esperava para entrar na sala conversei com a senhora à minha frente. Ela estava fascinada com tudo o que já tinha visto nesse dia de apresentação do novo maestro à cidade. Desfazia-se em elogios. Eu, que sou mais Filarmonia, deixei-a falar. Teria sido cruel falar da acústica, por exemplo. Entre impor-lhe a minha verdade e fazer-me eco da sua felicidade, nem hesitei. Afinal de contas, a quem interessa saber que o rei vai nu?...
O presidente da República alemã esteve ontem na Polónia e pediu desculpa pelos crimes cometidos pelos alemães contra os polacos. Fez o discurso óbvio do “nunca mais” – nunca mais se erga um país acima de outro país, umas pessoas acima de outras pessoas, uma raça acima de outra raça.
Como disse? "Raça"? Pensei que isso não existia já há algumas décadas...
E fartou-se de mandar recados à Polónia. Que a Europa é a garantia bla bla bla, e coisas assim. Não sei que me parece ir à Polónia pedir desculpa pelos crimes cometidos há oitenta anos, e aproveitar para deixar recados. Hoje não era o momento para fazer isso.
Coisas boas: andei a fazer de taxista dos bombos da Associação 2314 para dar um workshop para miúdos num bairro longínquo e mais pobre de Berlim. Marzahn. Também estavam lá crianças de um centro de refugiados. Foi giro vê-los – “bandos de pardais à solta” – e conhecê-los um a um. A miúda que me avisou cheia de segurança que não queria ser fotografada, os que se juntaram a fazer festinhas ao meu cão, o pequenito que tocava bombos com tamanha energia que bem podia participar num desfile na Senhora da Agonia em Viana. Também falei com uma menina alemã negra. A amiga dela, uma pequenita muito loira, disse-me “ela nasceu do chocolate!”. Respondi: “se nasceu mesmo do chocolate, só pode ter sido o melhor chocolate do mundo!” – e então a menina negra, que já estava a sair, virou-se para trás e ofereceu-me um sorriso de imensa doçura. Já ganhei a semana.
2 comentários:
Bem, vou pegar nas falcatruas, porque houve um caso parecido aqui na vizinhança, com um casal. Ele é funcionário público (Beamter) e, por isso, tem um seguro de doença privado - deves conhecer, tipo ADSE, ou seja, eles vão ao médico, pagam e depois apresentam as despesas e são reembolsados. Ela falsificou faturas dessas durante, pelo menos, 10 ou 15 anos. Não sei como conseguiu isso, durante tanto tempo. Enfim, a coisa descobriu-se, ela foi condenada a três anos de pena suspensa, porque pagou as dívidas. E como conseguiu o dinheiro? Os pais dela venderam a sua metade da casa dupla e foram para um apartamento alugado. O casal mantém a sua metade. Ele foi ilibado e pôde manter o emprego, porque, coitado, não sabia de nada. "Ela é que trata da escrita, eu nunca liguei". Nem nunca reparou que tinham mais dinheiro à disposição do que aquilo que ganhavam! Enfim, o juiz deve ter fechado os olhos a esta evidência, a fim de não desgraçar a família (têm uma filha, entretanto, adulta). Os pais dela vivem no seu apartamento alugado, eles continuam na sua casa com jardim. Filha e neta (o genro, não sei) continuam a contar com o dinheiro dos pais/avós. Enfim, cada um sabe da sua vida...
Coitados desses avós! :(
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