02 julho 2019

"Stonewall"

No dia em que na Biblioteca Ilustrada se falou de Stonewall, por se assinalar o cinquentenário do início da revolta, partilhei um texto de Frederico Lourenço sobre #Stonewall, e também esta foto que, em minha opinião, resume o que estava/está em causa.



Quando fala destas coisas, o Frederico Lourenço dá-me uma espécie de vergonha do mundo. E penso nas famílias onde não se fala “dessas coisas”: a situação de fragilidade em que as crianças crescem apenas porque os pais decidiram que se não houver palavras para “aquelas coisas “ também não haverá lugar para elas.

Eis o seu testemunho:



Orgulho Gay 

(foto e texto: facebook, mural do Frederico Lourenço)

Foi a 28 de Junho de 1969. Stonewall. Quem não souber, procure na net. Nesse dia começou algo que, para citar Thomas Mann, «ainda não parou de começar». Nesse dia, começou o início de uma nova consciência sobre pessoas que não só se sentem sexualmente atraídas, mas se apaixonam (até para toda a vida), por alguém que é do seu próprio sexo. Mulheres que amam mulheres. Homens que amam homens. Amor. Sexo, claro (consentido e entre adultos). «What's not to love?»

Nesse mesmo ano, o meu avô materno (a quem reconheço «post mortem» a feitura de fotos que exprimem toda uma época) achou por bem fotografar-me a mim, seu neto, e à minha irmã Catarina, sua neta, da forma que vocês vêem na foto. Azul para o menino. Rosa para a menina. Todo um universo de experiência humana numa fotografia tão simples.

O problema é que ao azul estava a ser adscrita uma mensagem que nada tinha a ver comigo. Eu era rapaz. Devia ter comportamentos de rapaz. Mas não tinha. Já escrevi sobre isso noutro texto («Terrorismo de Género», que foi o único texto que escrevi no Facebook que chegou aos 20.000 likes).

Quando o meu avô tirou esta fotografia, eu não sabia que era homossexual. Não sabia que existia homossexualidade. Mas sentia-me diferente dos outros meninos, que já sabiam, muito antes de eu próprio ter descoberto, que eu era gay. Chamavam-me maricas e paneleiro. Uma vez perguntei «o que é paneleiro?». Os meninos disseram-me que «é quem leva no cu». Isso não me fez sentido. «Leva o quê no cu?» Eu passei toda a minha infância num estado de inocência total em relação à sexualidade, mas fui permanentemente vítima de bullying por meninos e meninas (sim...) que sabiam «a missa toda» e que já tinham adivinhado, antes de eu próprio saber, a minha sexualidade.

Ter sido maltratado e insultado durante todo o meu percurso escolar teve um efeito em mim que durou para toda a vida. Fez-me permanentemente desconfiado em relação às pessoas. Cortou-me os mecanismos necessários para fazer amigos. Inculcou na minha cabeça a ideia paranóica que toda a gente «lá fora» me odeia - ideia com que luto ainda hoje, aos 56 anos, embora saiba racionalmente que não é verdade. Ser insultado e rejeitado na infância pela sexualidade que eu ainda não sabia que era a minha ocasionou também um dano de longo alcance: a dificuldade colossal que eu tenho de viver no presente. Estou sempre a fantasiar uma realidade alternativa à que é a real; e tenho de me obrigar a olhar à minha volta para aquilo que a realidade realmente é. A minha infância e adolescência deram-me a noção de que o Presente não é um espaço seguro; tenho de fugir dele, tenho de me defender dele. É difícil explicar os efeitos nocivos que isso teve em mim. Mas foram muito maus.

As pessoas dizem (de forma irresponsável) que ninguém tem de celebrar Orgulho Gay nenhum; e que ninguém tem de sair do armário; e que gays, lésbicas, bissexuais, etc. já cansam com a permanente chamada de atenção para a realidade que vivem.

Mas é óbvio para mim que o dia 28 de Junho tem de ser festejado e celebrado. Há países no mundo em que a homossexualidade ainda é punida com pena de morte (Irão, Arábia Saudita e por aí fora). Há países no mundo em que as pessoas pensam que a melhor coisa que os pais podem fazer com o seu filho homossexual é matá-lo (trata-se de países islâmicos, não vale a pena esconder esse facto; mas os países de religião cristã Ortodoxa russa e grega não andam lá tão longe). Os ataques a casais gays que demonstram afecto em público continuam em todos os países ditos «civilizados». O Brasil, com o seu presidente e com a sua ideologia boi/bala/Bíblia, é o que é.

Não venham dizer que não é fundamental celebrar o Orgulho Gay. É fundamental, sim.

Em 1969, no ano de Stonewall, puseram-me um balão azul nas mãos. A cor do balão implicava expectativas em relação a mim que eu não pude cumprir. Sofri por isso. Mas tudo bem. Muita coisa mudou para melhor desde aí. Pude ser quem sou. Pude casar com o André. Obrigado às mulheres e aos homens de Stonewall. Tenho o maior orgulho em ser gay.



6 comentários:

Maria disse...

Num mundo perfeito ninguém deveria sentir necessidade de escrever um texto assim, de ter que explicar o que me parece tão fácil de entender.
Deveríamos aceitar e respeitar todas as diferenças: sexuais, étnicas, religiosas, políticas e até futebolísticas.
Afinal que graça teria o mundo se fossemos todos iguais, assim estilo fotocópia?

Maria

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...



Tema muito sério e delicado...
E compreendo muito bem o que o FL deve ter sofrido (e aquilo que ainda diz sofrer).
Mas já não compreendo tão bem o orgulho homo-sexual, como também não compreendo o orgulho marialva, ou o orgulho da femme fatale.
Vendo melhor, não compreendo bem quase nenhum tipo de orgulho.
Aliás, não é a soberba um dos pecados capitais?

Helena Araújo disse...

Maria, pois.

Conde, não te esqueças que essas pessoas são perseguidas pelo que são - e algumas delas, tal como conta o Frederico Lourenço - ainda antes de saberem o que são.
Imagina que as pessoas que são mais altas eram vítimas de uma perseguição implacável: chamavam-lhes girafas ou escadote, faziam piadinhas sobre a sua altura, faziam-lhe ver permanentemente que há algo de errado e vergonhoso com o seu tamanho, faziam as portas das casas mais baixas que elas e sugeriam que elas deviam tomar hormonas ou ser operadas para não terem aquela altura toda. Imagina que vivias com vergonha permanente de ser alto, e com o temor permanente de seres gozado ou prejudicado por causa disso.
Em algum momento rebentava-te a tampa e gritavas: "sou alto, e com muito gosto! Vão pró diabo, é mazé! Deixem-me em paz!"
Gay pride é isso.
Não se compara com orgulho marialva nem orgulho da femme fatale porque essas pessoas não são sistematicamente perseguidas pela sociedade (e admito também que ser "marialva" ou "femme fatale" não seja um traço identitário tão fundo como ser homossexual, quer dizer: mesmo que fossem gozados, não eram atingidos tão profundamente).
No dia em que os homossexuais forem aceites e respeitados por todos, o gay pride vai provavelmente perder a sua importância, por já não ser necessário. Até lá, valem as palavras de Brecht: "do rio que tudo arrasta, se diz que é violento / mas ninguém diz violentas as margens que o oprimem..."
Nós somos as margens.

Helena Araújo disse...

Dito isto, confesso que também tropecei naquela formulação final: "tenho o maior orgulho em ser gay".
Teria preferido ler algo como "sinto-me profundamente bem dentro da minha pele de gay".
Mas remeto-me à minha insignificância: não compete à margem dizer ao rio revoltado por onde deve ir.

Nan disse...

Enquanto uma característica intrínseca de uma pessoa puder ser usada como insulto ou palavrão, é necessário proclamar o orgulho. Porque, num mundo onde ainda muita coisa lhes diz que não deviam existir, os jovens homossexuais precisam de modelos positivos e de um grupo de identificação.

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...

Helena,
compreendo o teu ponto de vista (e até estou de acordo com ele).

Só não concordo com o teu último parágrafo, porque nem eu, nem tu fazemos parte dessas "margens". Felizmente, não temos vocação para "comprimir" nada, nem ninguém...

Por acaso, a mim também me chamavam "escadote" e até "esparguete" (embora fosse a brincar...), o que não era lá muito agradável, e até já me apelidaram de fascista, nos tempos do denominado "PREC". Mas aí eu tinha muito orgulho em ser livre de pensar à minha maneira (que até não tinha nada de fascista, mas nesses tempos a moda era ainda a "unicidade" mental)...

E tenho a sensação de que a Sociedade actual já aceita duma maneira menos discriminatória a homo-sexualidade masculina. Até o meu filho de 13 anos diz, com a maior naturalidade do Mundo, que um dos seus melhores Professores "é casado, mas não tem Mulher, tem Marido" (e o seu Irmão de 10 anos fica assim um pouco pensativo, mas não se manifesta sobre aquilo que ainda não compreende bem, até porque nós dois preferimos, nestes casos, não introduzir "ruído" adulto nas suas conversas inocentes sobre este tema...).