Partilho um belo texto da Sara Monteiro que li no facebook.
A série "viagens de comboio" da Sara Monteiro devia ser publicada em livro. A série sobre as aulas que dá nas prisões, também.
Aqui fica então uma das viagens mais recentes da Sara:
Quem vai de comboio para o sul, quando chega a Santa Clara Sabóia, atravessa uma fronteira invisível: a temperatura, o cheiro, a consistência do ar ficam diferentes.
E em Tunes, aqueles que saem do Intercidades (ou Alfa) para apanhar o regional com destino a Lagos, descobrem um outro tempo.
Na carruagem onde eu seguia, talvez fôssemos 20. Ciganos, negros, ucranianos, alemães, japoneses, portugueses, brasileiros. No mínimo.
O casal cigano tem um carrinho de bebé a obstruir a passagem. Chega uma rapariga negra com outro carrinho. Quer passar, pede desculpa pelo incómodo. O rapaz levanta-se de um salto, pega no bebé, entrega-o à mãe, desmancha o carrinho e num instante liberta o espaço. A rapariga agradece, senta-se mais à frente.
O bebé do casal acorda e começa a chorar. Nova agitação. O pai pega-lhe ao colo enquanto a mãe prepara o biberão. Agarra em mil tralhas e vai até à casa de banho, mas está ocupada, tem de esperar.
Ouvimo-lo perguntar:
- Mas não trouxeste água?
Meu momento racista: “Não me digam que ela vai fazer o biberão com a água do comboio!”
Não devo ter sido a única a pensar o mesmo. Uma mulher loira precipita-se na sua direção com uma garrafa de litro e meio.
- Se precisar de água..
- Ah eu tenho aqui água quente. E mostra uma garrafa termo.
Ficámos sem saber o que ela queria da casa de banho.
O bebé está cada vez mais irritado. O pai passeia pela carruagem, devorando-o com beijos.
A carruagem está ansiosa, segue os gestos da mãe – ela é tão bonita, parece a Cleópatra – atentamente. A rapariga também está tensa. Diz que não tem jeito nenhum ele ter acordado no fim da viagem.
Finalmente, o biberão está pronto. O outro bebé não acordou. Tudo está bem.
Sorrimos uns para os outros (os japoneses também).
Daqui tiro duas possíveis conclusões:
Primeira – é óbvio que tanto os ciganos como a rapariga negra leram o artigo da Maria de Fátima Bonifácio e deram-nos um baile de boas maneiras só para nos desorientar.
Segunda – o comboio regional do ramal de Lagos traz ao de cima o que há de melhor nas pessoas.
Comentário extra – ao levar água à rapariga cigana, a senhora loira denunciou-se mais do que eu.
A série "viagens de comboio" da Sara Monteiro devia ser publicada em livro. A série sobre as aulas que dá nas prisões, também.
Aqui fica então uma das viagens mais recentes da Sara:
Quem vai de comboio para o sul, quando chega a Santa Clara Sabóia, atravessa uma fronteira invisível: a temperatura, o cheiro, a consistência do ar ficam diferentes.
E em Tunes, aqueles que saem do Intercidades (ou Alfa) para apanhar o regional com destino a Lagos, descobrem um outro tempo.
Na carruagem onde eu seguia, talvez fôssemos 20. Ciganos, negros, ucranianos, alemães, japoneses, portugueses, brasileiros. No mínimo.
O casal cigano tem um carrinho de bebé a obstruir a passagem. Chega uma rapariga negra com outro carrinho. Quer passar, pede desculpa pelo incómodo. O rapaz levanta-se de um salto, pega no bebé, entrega-o à mãe, desmancha o carrinho e num instante liberta o espaço. A rapariga agradece, senta-se mais à frente.
O bebé do casal acorda e começa a chorar. Nova agitação. O pai pega-lhe ao colo enquanto a mãe prepara o biberão. Agarra em mil tralhas e vai até à casa de banho, mas está ocupada, tem de esperar.
Ouvimo-lo perguntar:
- Mas não trouxeste água?
Meu momento racista: “Não me digam que ela vai fazer o biberão com a água do comboio!”
Não devo ter sido a única a pensar o mesmo. Uma mulher loira precipita-se na sua direção com uma garrafa de litro e meio.
- Se precisar de água..
- Ah eu tenho aqui água quente. E mostra uma garrafa termo.
Ficámos sem saber o que ela queria da casa de banho.
O bebé está cada vez mais irritado. O pai passeia pela carruagem, devorando-o com beijos.
A carruagem está ansiosa, segue os gestos da mãe – ela é tão bonita, parece a Cleópatra – atentamente. A rapariga também está tensa. Diz que não tem jeito nenhum ele ter acordado no fim da viagem.
Finalmente, o biberão está pronto. O outro bebé não acordou. Tudo está bem.
Sorrimos uns para os outros (os japoneses também).
Daqui tiro duas possíveis conclusões:
Primeira – é óbvio que tanto os ciganos como a rapariga negra leram o artigo da Maria de Fátima Bonifácio e deram-nos um baile de boas maneiras só para nos desorientar.
Segunda – o comboio regional do ramal de Lagos traz ao de cima o que há de melhor nas pessoas.
Comentário extra – ao levar água à rapariga cigana, a senhora loira denunciou-se mais do que eu.
4 comentários:
Boa noite!
Hoje senti saudade de visitar os amigos e as amigas blogueiras. Ando um pouco afastada das visitas, a saúde não anda muito legal, mas com fé em Deus estou superando. Nada grave, só a tendinite que me prejudica teclar.
Certo dia,
Passou uma criança e achou que aquela flor era parecida com ela: bonita, mas sozinha.
Decidiu voltar todos os dias.
Um dia regou, outro dia trouxe terra, outro dia podou, depois fez um canteiro, colocou adubo...
Um mês depois, lá onde tinha só pedras e uma flor, havia um jardim!..."
Assim se cultiva uma amizade
E como nem sempre a distância nos
permite cultivar as amizades como gostaríamos, espero que esta mensagem possa ser um pouquinho de adubo, para que a nossa amizade nunca morra por falta de cultivo.
Parabéns pelo post, sempre com bom gosto e criatividade.
Tenha um fim de semana feliz e abençoado. Beijo no coração.
Eis mais uma prova de que a vida real raramente se conforma e possui semelhanças com as massificadas e avassaladoras narrativas mediáticas.
O problema é haver ainda quem pense que a verdade está na televisão e que a vida real é que é uma ficção.
Tal como escrevia um saudoso Primo meu, prematuramente falecido (com 54 anos), no frontispício do seu "feicebuque": «SEI QUE HÁ VIDA PARA ALÉM DO "FACEBOOK", MAS EU PERDI A "PASSWORD"»...
Este é o melhor texto, o mais pedagógico, o mais humano, o mais inteligente, o mais simples, o mais desarmante, que poderia ser escrito, dito, sentido, para oferecer (sem ironia, porque acredito nas pessoas), pelo Natal, à senhora professora MFB.
Magnífico!
Obrigado!
Conde Oeiras, essa frase é o máximo! :D
AP, a Sara Monteiro escreve textos lindíssimos. Também gosto muito dos apontamentos que faz sobre as aulas que vai dar a prisioneiros. E um comentário que fez uma vez: "as prisões estão cheias de boa gente".
Enviar um comentário