Há dias comparei os valentes que "ousam assumir" um discurso politicamente incorrecto a uma criança de três anos que grita "cocó" no meio de uma sala cheia de visitas. Mas ao ler o artigo mais recente do João Miguel Tavares dei-me conta de que a imagem peca por defeito. Corrijo agora: o que esses valentões dizem não é "cocó", é: "ganda puta!"
E parece que não tiveram pais que os educassem, em criança.
Por algum motivo que gostava de entender, mas argumentando que estão a respeitar a liberdade de expressão, os jornais publicam a provocação. Dão palco a estes discursos que não fazem o menor esforço para esconder os tiques de supremacia branca, e até os exibem em letras grandes e gordas:
Ganda puta!
Desculpem que pergunte: em nome de quê publicam os jornais um "ganda puta!" (por exemplo: "Sim, há culturas que são superiores a outras") em letras gordas?
A posição de que as ideias se debatem com ideias, e que a vantagem da publicação de textos infelizes é dar ensejo à publicação de textos felizes para contrapor, parece-me um bocadinho ingénua. Qual é o poder e o valor do contraditório nestes tempos de fake news, quando já é do conhecimento de todos que as pessoas ouvem apenas aquilo que querem ouvir e acreditam apenas naquilo em que querem acreditar, quando a terra ser redonda ou plana, a chegada do Homem à lua ou a importância das vacinas são meras questões de opinião? Hoje em dia, o que acontece no espaço público não é um debate esclarecedor, mas uma enorme chinfrineira. Para muitos, o debate esgota-se de forma satisfatória no momento em que lêem o "ganda puta!" da sua convicção escrito em letras grandes e gordas nas páginas do Público. Tudo o resto que se possa dizer sobre o assunto será ignorado: mera canzoada a ladrar.
São estas as novas regras do jogo, e não as podemos ignorar.
Fazer o quê, então? Não sei. Mas o facto de não ter solução para este problema não inviabiliza a crítica e não nos pode impedir de reconhecer que chegamos a uma situação de impasse.
Para tornar tudo ainda mais complexo, a gravidade desta questão não se esgota na improficuidade do debate. Se as ideias apresentadas e debatidas se limitassem a discutir o sexo dos anjos, menos mal. Mas muitas vezes esses "ganda puta!" atirados para o espaço público de debate ferem impiedosamente a dignidade humana. O infantiloide que se julga muito valente por não respeitar "a ditadura do politicamente correcto", e grita insultos para o meio da sala, está realmente a cometer tortura psicológica contra as pessoas de alguns grupos marginalizados. Dizer-se neste caso que "quem não deve não teme" será sinal de ignorância e falta de empatia. É exigir demasiada nonchalance a pessoas que ao longo de toda a sua vida são humilhadas por atitudes - muitas vezes inconscientes e involuntárias - de ódio étnico e racial. Estou a pensar, por exemplo, no que me contou há dias um empresário alemão: em miúdo, fartou-se de apanhar tareias na escola e na rua, sem saber o que é que os outros miúdos tinham contra ele. Até que um dia percebeu: o seu cabelo castanho dava-lhe um ar de turco. Isso mesmo: perseguiam-no e batiam-lhe apenas por acharem que ele era turco. Ele - filho, neto e bisneto de alemães - tinha como escapar a esta dinâmica de violência. Mas os outros, os filhos de turcos, não.
E estou a pensar neste filme, que mostra bem o que é crescer num ambiente hostil:
O meu filho está há meses a trabalhar com grande entusiasmo e generosidade na organização do festival in*Vision. Um dos objectivos do festival é trazer para o centro da sociedade pessoas que se sentem marginalizadas. Fazê-las acreditar que são cidadãs de pleno direito, e que esta Polis também é delas - nem mais nem menos que dos outros.
De cada vez que um jornal publica um destes "ganda puta!" de supremacia branca em letras gordas, destrói o trabalho dos organizadores do in*Vision e de tantas iniciativas do género, e obriga-os a recomeçar, uma e outra vez. Pergunto-me se o João Miguel Tavares, a Fátima Bonifácio e outros comentadores do género se sentem contentes e orgulhosos do importante papel que escolheram ter na sabotagem dos esforços para criar uma sociedade igualitária.
E fico à espera dos próximos capítulos no Púlico: será que teremos em breve mais um artigo da Bárbara Reis a criticar os "snowflake" por afinarem logo mal lhes chamam "ganda puta!"? Será que na próxima semana João Miguel Tavares nos vai explicar porque é que os tipos que vivem nos guetos da "cultura inferior" não se devem revoltar contra os da "cultura superior" que os tratam com a rudeza de um miúdo de dois anos que quer provocar a autoridade dos adultos?
6 comentários:
Nada melhor contra este tipo de fanfarronice estéril e presumida que a indiferença e o desprezo.
Há já décadas que ignoro o «Público», o «Expresso», a «Sic», a «Tvi», a «Renascença», o «Correio da Manhã», a Bárbara Reis, o zé manel fernandes e toda essa panóplia interminável e INSUPORTÁVEL de gabarolas e vendilhões de mentiras e de injúrias gratuitas.
Não há diálogo possível com vendilhões. Nem o próprio Jesus Cristo teve pachorra para isso...
Como disse abaixo o que é profundamente deprimente é que esta gente nem sequer faz um esforço para parecer inteligente. Carl Schmitt podia ser um Nazi, mas era um grande intelectual e um escritor magnífico (pelo menos o 'Terra e Mar' que li dele, em Português, que o meu Alemão não chega para tanto). Os 'intelectuais' desta vaga neo-reacionária são pessoas como Jordan Petterson, parece...
Ou seja, a boçalidade está mesmo ao nível de quem diz 'Ganda Puta!'.
Mas isso são boas notícias. Bastam uns quantos RAPs e se calhar vai mesmo tudo por água abaixo. Ah, entendessem as massas ignaras a ironia :-) !
Conde Oeiras, compreendo a tua posição, mas penso que a indiferença não chega. Este veneno está a alastrar e a fazer estragos na sociedade.
Jaime, infelizmente não me sinto tão optimista.
Continuo a pensar na síntese feita por um amigo meu, antes da eleição do Trump: "o Trump desperta o filho da puta que há em nós".
É esse o segredo do sucesso. Tornar os nossos instintos mais vis algo aceitável. Uma opinião como qualquer outra. :(
Sim, sem dúvida, o meu optimismo tinha qualquer coisa de irónico. E havia igualmente imensos arruaceiros entre os Nazis. Mas o ponto é que o triunfo do nacional-socialismo não se fez sem a colaboração activa dos intelectuais.
Há, claro, imensos tecnocratas dispostos a vender a alma a um Trump ou a um Putin, mas por agora o nível do discurso é muito baixo. Para construir um programa político, mesmo em torno de instintos vis, é preciso massa cinzenta.
De resto, este senhores não são neo-fascistas, são patrimonialistas (novos senhores feudais, se quiser). O seu interesse é antes de tudo o dinheiro, utilizam o ressentimento como forma de recrutar adeptos que até votam contra os seus interesses económicos pelo gozo de pisar em cima dos mais fracos e dos liberais.
Depois, Hitler, Mussolini, Estaline ou Franco eram todos homens com coragem física. Para se ser um monstro em toda a sua plenitude é preciso não ter medo do morrer. Não sei se isso é o que se passa com estes senhores...
Nem sei que diga, Eduardo. :(
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