08 julho 2019

ah, e tal, mas a Fátima Bonifácio limitou-se a descrever como é que os ciganos são...

Algumas informações para quem elogia a coragem da Fátima Bonifácio de dizer as coisas como elas são no que respeita aos povos ciganos:

1. A realidade actual dos povos ciganos na Europa é o resultado de mais de meio milénio de perseguições e marginalização. Para terem uma ideia: já por decreto de 1526 foi proibida a entrada de ciganos em Portugal e ordenada a expulsão dos que viviam no país. A proibição manteve-se ao longo dos séculos. Como a Espanha também proibia a entrada de ciganos, estes não tinham como cumprir a lei, e foram ficando em Portugal em situação de absoluta ilegalidade. Os ciganos que fossem apanhados eram punidos com açoites, perda de todos os seus bens, vários anos de galés (no princípio do séc. XVIII as galés eram reservadas aos homens; as mulheres ciganas eram deportadas para o Brasil, onde havia grande escassez de mulheres brancas para os colonizadores que não quisessem ou não pudessem casar com uma índia ou uma escrava negra), e em alguns casos até a pena de morte.
Outro facto muito importante para compreender as raízes históricas da "incapacidade de se integrar" do povo cigano: os portugueses que andassem com eles também estavam sujeitos às mesmas penas (açoites, expropriação, galés).
Sabendo isto, como é que nos podemos admirar que os ciganos vivam segundo as suas próprias leis, e tenham dificuldade em integrar-se? Mais ainda: como é que nos ocorre culpá-los de uma situação que foi criada pela perseguição institucional e social que durante séculos a sociedade portuguesa moveu contra eles? Que acções e que tempo são necessários para reduzir a desconfiança e sarar as feridas gangrenadas ao longo de tantos séculos?

2. O anticiganismo dos europeus é um facto, existe desde a Idade Média, e ainda hoje é aceite sem qualquer problema. Na nossa sociedade há um enorme à-vontade para generalizar e para falar das pessoas ciganas como se tivessem um problema genético de preguiça e de propensão para o crime e a ilegalidade, e poucos se dão conta da carga racista do discurso que fazem. Este nosso anticiganismo é um hábito que nos impede de ver as pessoas para além das categorias em que as arrumámos, e nos impede de encontrar soluções para os problemas que provocam tanto sofrimento e desconforto quer a essas minorias quer à sociedade em que vivem. Insistir numa retórica anticiganista é participar na construção dos entraves à resolução dos problemas, e simultaneamente atribuir cinicamente aos ciganos a responsabilidade por uma situação que resulta em grande parte das nossas escolhas, das nossas acções, do nosso discurso de rejeição ou, no mínimo, da nossa indiferença.

3. O que é realmente grave no texto de Fátima Bonifácio:
- Ignora o contributo da sociedade portuguesa para a criação do contexto em que essa minoria vive, bem como a questão da responsabilidade histórica.
- Parece decalcado da "retórica assertiva" dos nazis: "nómadas sem lei", "incapazes de integração", "resistentes ao trabalho", "com costumes diferentes dos nossos" - numa palavra: "associais". Como se Fátima Bonifácio não conhecesse a História do século XX, nada soubesse sobre os ciganos enviados para as câmaras de gás com um triângulo negro cosido no casaco (o símbolo dado aos "associais"),  e não tivesse tirado dela nenhum ensinamento.
- Evita a todo o custo estudar e tentar ver para além das aparências.
- Reforça o anticiganismo e o preconceito, preparando o terreno para que a sociedade civil aceite com indiferença e até alívio eventuais acções de violência (inclusivamente institucional) contra os ciganos. Caso hoje apareça por aí um político que queira dar uma "solução final" ao "problema cigano", textos como este da Fátima Bonifácio adequam-se maravilhosamente à sustentação "factual" de acções de perseguição racista.

4. Os ciganos alemães que conseguiram sobreviver à perseguição nazi e ficaram neste país parecem estar bem integrados. Vivo na Alemanha há 30 anos, e não me lembro de ter visto notícias ou ouvido comentários privados sobre alguma espécie de ameaça que os Roma e Sinti alemães possam representar para esta sociedade. Ou seja: em cerca de 50 anos foi possível passar da retórica nazi, que levou ao genocídio, para a coexistência pacífica.
Deixo esta última informação como sinal de esperança para os portugueses: se houver vontade política e tomada de consciência por parte da população civil, é possível corrigir em meia dúzia de décadas os terríveis resultados de meio milénio de anticiganismo institucional.
Mas se preferirem aplaudir a "assertividade" da Fátima Bonifácio, e teimar numa perspectiva mal informada e maniqueísta da situação, então aí...

6 comentários:

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


Aqui sim, acho que aplica mesmo bem o tal rio "violento" e as margens que o comprimem...

Helena Araújo disse...

E no caso dos homossexuais, não?
Ai! ;)

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


Claro que se aplica bem, mas no caso concreto em que o aplicaste (o meu comentário ao artigo que discutíamos) não tão bem como neste, só isso...

:-)

Helena Araújo disse...

:)

Carlos Luna disse...

Vivo numa região onde o anticiganismo começa a ser preocupante, no Alentejo. O seu texto permite-me reforçar os meus argumentos contra essa atitude. Obrigado!

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...


É verdade. O Alentejo, por causa do seu crescente e preocupante despovoamento, precisa de mais policiamento e vigilância, para evitar o aumento descontrolado do crime, que é praticado cada vez mais, tanto por Ciganos, como por outras pessoas, mas que está a originar este perigoso sentimento de rejeição.