22 maio 2019

Chico e Camões


Às vezes penso que as palavras da língua portuguesa foram inventadas de propósito para se alinharem certeiras nos versos do Chico Buarque. Depois lembro-me que podia dizer o mesmo dos sonetos de Camões, mas - deslarguem-me! - o Chico tem o joker daqueles olhos verdes, enquanto o Camões tinha apenas um olho - e nem sequer me é verde, que só o sei a preto e branco.

(Ai! Já me desgracei! Isto era para ser um post sobre literatura, não tinha intenção de vir aqui para falar dos olhos de ninguém.) (Maldito Freud, que nunca dorme.)

Segunda tentativa: hoje, ao ver o facebook cheio de poemas - e estava capaz de apostar que muitos deles foram escritos de cor -, lembrei-me de Marcel Reich-Ranicki. Era um famosíssimo crítico literário que teve de 1988 a 2001 um programa de literatura na televisão alemã com enorme sucesso apesar de ter imposto um formato de rádio, e aos noventa anos se recusou a receber um importante prémio de televisão, em sinal de protesto pela falta de qualidade que impera naquele meio. Em conversa posterior argumentaram que o grande público pede essa mediocridade, e ele refutou, afirmando peremptório que um Shakespeare do nosso tempo também seria capaz de atrair multidões.

O Chico é um caso desses: consegue alojar a literatura no coração das pessoas, e fá-lo como se fosse fácil. Mais ainda: os seus poemas extravasam da literatura, andam enrolados connosco, fraseiam-nos a vida. Preparam-nos para o que nos pode acontecer - e de tal modo nos preparam bem que chego a pensar que somos plasmados pelos seus versos. Exagero meu, bem sei. Mas - deslarguem-me! - isto são muitos discos aprendidos inteiros de cor, são muitos encontros felizes com amigos a falar do que escreve, é o meu horizonte muito enriquecido pelas palavras e os temas de um Brasil de todas as cores, são muitos duetos com ele em inúmeras viagens solitárias entre a casa e o trabalho, são os meus filhos a cantar em português (ah, "Os Saltimbancos"!), são as milhentas frases que se erguem das músicas para me explicar nuns dias o mundo e noutros o meu sentir.

O Chico eleva-nos, maravilha-nos, alarga-nos o olhar. Que mais se pode pedir à literatura?


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