27 abril 2019

regurgito ergo sum

Em 2019, os fitados e as fitadas do curso de História da Universidade de Coimbra, que fica em Portugal, um país da União Europeia, querem desfilar com um carro com o símbolo de um comboio e o nome "Alcoholocausto".

Sublinho:  a Academia de Coimbra, a imagem de um comboio  e o nome Alcoholocausto.

Imagino a notícia num El Pais, num Le Monde, num Guardian, numa Spiegel. Imagino o regozijo dos neonazis alemães, as imagens destas notícias em partilha viral em sites anti-semitas: a festa que vai ser. Imagino o prejuízo para a imagem de Portugal e da Academia de Coimbra. Mas os estudantes que tiveram tão brilhante ideia não conseguem imaginar nada disto. Pelo que tenho ouvido, explicam que se trata de uma crítica à situação do ensino e ao exagero de álcool no meio estudantil, argumentam que não há vacas sagradas, afirmam o seu direito à liberdade de expressão e insultam quem os critica.

Se fosse uma crítica à situação do ensino, a primeira pergunta que se levantaria era: e o que é que o genocídio dos judeus tem a ver com isso? Que motivos têm estes estudantes para se sentirem autorizados a banalizar a palavra que designa este desmesurado crime contra a Humanidade (mais brutalmente chocante pelo facto de ter sido organizado de forma fria, industrial e eficiente por uma das nações mais civilizadas e evoluídas do mundo)? Porque é que escolheram ofender e humilhar o povo judeu, e dar uma enorme alegria aos neonazis e aos anti-semitas, apenas para fazerem as suas queixas sobre a situação do ensino?
(E: porque é que eu tenho de explicar isto a estudantes universitários do curso de História?)

Se fosse uma crítica ao abuso do álcool no meio estudantil, gostaria de saber se a crítica se limita ao nome do carro, ou se vem acompanhada de outras acções (quais?). Além disso, olhando para a sua página de facebook - chamada "Novos Fitados de História 2018/2019", marcada como "Vinho/Bebidas alcoólicas" e com uma caneca de cerveja em lugar de evidência na imagem da capa - pergunto-me se estas pessoas caíram do cavalo, como São Paulo a caminho de Damasco.
Mas mesmo que estejamos perante um caso de conversão profunda, "Alcoholocausto" não é o nome certo para esta crítica. Não me consta que os estudantes de Coimbra estejam a ser obrigados a beber, à mercê de um regime totalitário que tenha decidido matá-los até ao último. Se me permitem uma sugestão: se já têm o carro preparado e não querem desistir dele, talvez pudessem antes chamar-lhe "no comboio descendente".

Quanto a não haver vacas sagradas: a sério? Será que os Novos Fitados de História 2018/2019 ainda não se aperceberam que vivem numa sociedade com regras, limites e responsabilização das pessoas pelos actos que praticam? Será que ainda não se deram conta de que muitas das regras e dos limites radicam numa matriz de valores comum e na necessidade imperiosa de uma coexistência pacífica entre as pessoas e entre os grupos?
É certo que algumas dessas imposições têm certa margem de flexibilidade. Mas - e mantendo a alegoria da "vaca" como tabu - vivemos numa sociedade na qual se pode comer carne de vaca, se pode não comer carne de vaca, e se pode confrontar as pessoas com os valores subjacentes a cada uma dessas atitudes. Não vivemos cada um na sua ilha. Em sociedade, é normal debater, confrontar, e assumir as escolhas que se fazem, com todas as suas consequências.

Finalmente, a liberdade de expressão. O Ricardo Araújo Pereira defende que as pessoas devem poder dizer tudo o que lhes apetece, porque assim ficamos a saber mais facilmente onde estão os parvos. Não concordo nada com isto. O mais tardar depois da eleição de Trump ficámos a saber que de pouco nos serve saber que o país mais poderoso do mundo está nas mãos de um parvo. Tanto mais que o facto de Trump ter podido dizer tudo o que lhe apeteceu contribuiu imenso para a degradação do discurso no espaço público. Os racistas e os xenófobos sentem-se agora muito mais à vontade para dizer em público o que lhes vai nas entranhas.
A liberdade de expressão é o direito de se dizer aquilo que se pensa. Sublinho: o que se pensa. É para usar o cérebro, tentando desligá-lo o mais possível do sistema digestivo. "Penso, logo existo" não pode dar lugar a "regurgito, logo existo".
Mais: a liberdade de expressão não é um direito absoluto. Está limitada por outros direitos fundamentais, como o respeito pela dignidade humana.
Mas se aceitasse a posição do Ricardo Araújo Pereira, pediria hoje aos alunos que teimam em chamar Alcoholocausto ao seu carro que mostrem a cara. Não se escondam atrás de um vago "Novos Fitados de História 2018/2019", digam quem são, dêem a vossa cara e o vosso nome, para podermos identificar mais facilmente os parvos.

Apelo ainda aos outros, aos que não concordam, para que tomem uma posição pública. Bem sei que desde os primeiros dias de caloiros foram condicionados para ganharem reflexos de aceitação acrítica e de defesa da manada, mas esta é uma boa oportunidade para despertarem e tomarem uma atitude de adultos.
Aproveito para contar um episódio passado num liceu de Berlim há alguns anos: durante uma aula de ginástica, alguém pôs no cesto de papéis a roupa de um aluno de quem ninguém gostava. A escola tomou uma posição firme: ou os responsáveis se acusam, ou alguém que tenha visto os acusa, ou a turma toda leva um castigo enorme (não participar na viagem de fim de ano, que era uma semana num veleiro na costa holandesa). Como disse o director de turma: "há setenta anos, as pessoas foram testemunhas da ignomínia e ficaram caladas. Não queremos que isso volte a acontecer na nossa sociedade."


ADENDA: fui alertada para um erro no texto inicial. O carro tem o símbolo de um comboio, e não a forma. Corrigi esse erro.




4 comentários:

Jaime Santos disse...

Discordo de si numa coisa. Infelizmente, acho que há mesmo quem diga certas ignomínias depois de ter pensado bem nelas. Talvez não os estudantes de Coimbra, que julgo que pensam que estão a ser irreverentes e que provavelmente não sabem bem do que falam, mas há quem esteja para além da decência.

Trump pode ser um alarve, mas o que diz não se reduz à mera alarvidade. Tem um objetivo político claro, desde logo ofender gratuitamente os opositores e entusiasmar os apoiantes, que parece que não se lembram que tais atitudes vão contra aquilo que poderíamos esperar de pessoas piedosas (como muitos deles declaram que supostamente são).

Um certo sentido cristão das coisas leva-nos a pensar que não devemos desesperar de ninguém, mas não sei se isso é sempre verdade.

E se me disserem que isso representa um julgamento moral não apenas de Trump mas de quem o apoia precisamente porque ele age como age, pois paciência. A palavra deplorável pode não chegar neste caso... O povo, ou parte dele, pelo menos, muitas vezes não se recomenda (veja-se o que sucedeu na Alemanha de 1933 a 1945).

A liberdade de expressão não é absoluta, mas em princípio a sua limitação não seria necessária se fossemos capazes de perceber que a auto-censura é por vezes uma componente fundamental daquilo a que chamamos simplesmente boa educação e respeito pelos outros...

Abraham Chevrolet disse...

Holocausto não será uma palavra originária do grego,utilizada há vinte e muitos séculos por Eurípides? A menos que tenha sido comprada por alguém que terá o direito,como proprietário, de a usar como entende...
As boas causas nem sempre mostram os melhores argumentos.

Inês Meneses disse...

ia comentar no facebook, mas o Jaime já disse, bem melhor do que eu o faria, o que eu queria dizer

Helena Araújo disse...

Inês, concordo contigo. O comentário do Jaime é excelente.