05 abril 2019
os meus problemas de primeiro mundo
Entre um mês de férias em Portugal e duas semanas e meia na África do Sul aceitei um trabalho de tradução infinito. Podem ter pena de mim, é caso para isso.
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No fim de cada lavagem, a máquina de lavar a louça avisa-me que há uma fuga de água algures. Tenho de chamar o técnico, mas não tenho tempo. De cada vez que estou a lavar a louça à mão, lembro-me que chamar o técnico custa menos tempo que lavar a louça à mão. Mas mal tenho tudo lavado, dedico-me às urgências que não me deixam tempo para telefonar ao técnico.
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Ao fim de quatro anos a esfregar torneiras como se não houvesse amanhã e a descalcificar as máquinas, instalámos um equipamento para tirar o calcário desta nossa água berlinense. Já não era sem tempo!
Mas deixámos uma torneira para poder ter alguma água não tratada. Para beber, por exemplo.
Fizemos o teste de olhos fechados, e ambos adivinhámos o copo certo: a água tratada é realmente mais salgada.
De cada vez que desço quatro andares com as minhas garrafas para as ir encher na cave, penso nas crianças africanas que têm de andar quilómetros para ir buscar a água.
(Se fosse esperta, já agora também punha na cave as bolachinhas, os chocolates e os refrigerantes. É o truque clássico para não engordar: armazenar as coisas que engordam o mais longe possível do sítio onde as costumamos comer.) (Assim, de cada vez que fosse buscar um quadradinho de chocolate, aproveitava e trazia água para cima.)
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Tenho andado a tentar reduzir os víveres da despensa.
Nota mental 1: se uma coisa está há anos à espera de ser comida, é porque ninguém a come. Não vale a pena voltar a comprar.
Nota mental 2: ir verificar quantas embalagens de cuscuz tenho antes de comprar mais.
Nota mental 3: prever atempadamente quando me vai passar aquela onda da comida de um país, e parar atempadamente de comprar ingredientes para esse tipo de pratos.
Por causa de andar a esvaziar a despensa, e de não ter tempo para ir repor o que entretanto deixou de haver, fiz finalmente aquela massa integral bleeerg bleeeerg bleeeerg com três farinhas diferentes. Fritei uns brócolos com alho para envolver, mas como estava muito seco juntei ainda umas colheradas de uma sopa creme de feijão e pimento que tinha descongelado para o jantar.
Ora bem, se quiserem emagrecer, usem esta receita. Andei 24 horas enjoadíssima e sem fome nenhuma.
(Bem sei que é a segunda vez que falo em emagrecer neste post, mas reparem que até tive o cuidado de escrever no título a avisar ao que vinha.)
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Quase quase no limite de abrirem flor, o Joachim andou a podar as árvores de fruto do nosso jardim. Trouxe alguns dos ramos cortados para casa, e pu-los em água. As flores abriram que é uma maravilha, em meia dúzia de dias a Primavera instalou-se na nossa mesa. Tentei fazer uma fotografia que desse uma ideia do espanto que sinto ao olhar para aquelas simples flores brancas, e descobri que a câmara está com um problema qualquer. A cozinha cheia de luz, as flores todas oferecidas na sua beleza aberta, e a câmara tira-me umas fotos pálidas e de formas indistintas. Deve ser depressão.
(Depressão, apanho-a eu: a uma semana de partir para o Kruger na África do Sul, descubro que a câmara está avariada! Como é que eu vou conseguir estar lá se não tirar fotografias?...)
(Sobra-me o telemóvel, mas toda a gente diz que não se deve usar a função zoom do telemóvel. Vou ter de chegar bem perto dos leões para os poder fotografar. Espero que eles não tenham medo de mim, e não desatem a fugir a catorze pés.)
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Comprei um desodorizante daqueles muito fantásticos e naturais, sem alumínio e sem nada, muito amigo da pele e do ambiente. Mais me valia ter poupado o dinheiro: é tão amigo da pele que a meio do dia tenho de me ir lavar de novo e mudar de roupa. Amigo do ambiente, uma ova! O ambiente é que paga a duplicação das lavagens de roupa.
Há muitos anos, ouvi num programa infantil uma miúda africana a dizer que os europeus têm vergonha do seu próprio corpo e não suportam o seu cheiro natural.
(Que diria se conhecesse os japoneses!..)
Mas deu-me que pensar: o desodorizante mais fantástico e mais amigo da pele e do ambiente era uma mudança da matriz epistemológica dos costumes, digamos assim, e passarmos a aceitar a transpiração do corpo como um odor natural.
Deixem lá, deixem lá, já cá não está quem falou.
Já nem sequer estou aqui, já estou outra vez na minha desgraçadíssima tradução.
(Agora fiquei a pensar se os leões do Kruger preferirão pessoas a cheirar bem ou pessoas a cheirar a pessoas. Às tantas, em apertando a fome, marcham tanto umas como as outras.)
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