08 janeiro 2019

fact-checking: o comunicado da TVI sobre a entrevista ao Mário Machado



O comunicado da TVI sobre a entrevista ao Mário Machado no programa de Manuel Luís Goucha é um belo naco de prosa. Vão ler tudo, encantem-se com as declarações de princípios (só faltam mesmo os violinos).

O problema é que depois tentamos ver o que aconteceu realmente, e as coisas não condizem assim tão bem. Como este post vai ser longo, começo pelo final: vendo o programa, podemos concluir que:

- Bruno Caetano, que se diz jornalista da TVI, concorda com algumas das ideias do movimento de Mário Machado e decidiu dar-lhe palco no programa da manhã da TVI;

- Manuel Luís Goucha e Maria Cerqueira Gomes, dois entertainers de programas da manhã, não se prepararam minimamente para a entrevista que iam fazer e não a souberam conduzir e orientar numa perspectiva de defesa da Democracia, apesar de Goucha ter afirmado várias vezes que lhe deu palco para poder rebater as ideias apresentadas, como se deve fazer num sistema democrático;

- a direcção da TVI, ao ver-se alvo de fortes críticas, fugiu à sua responsabilidade e à exigência de transparência: em vez de identificar e assumir as suas responsabilidades no que correu mal, e tomar medidas adequadas e coerentes, escreve um comunicado cheio de declarações de princípio e de afirmações que não correspondem ao que aconteceu no programa, tentando justificar o que aconteceu e desvalorizar as críticas (mas a seguir cancela a rubrica de Bruno Caetano no programa da manhã).

Vamos então à verificação dos factos. Por falta de espaço, limito-me a analisar o ponto 4 do comunicado da TVI, que assim reza:

 "As opiniões e a visão histórica expressas por Mário Machado nos referidos programas foram enquadradas por visões alternativas às por si sustentadas. As contradições entre a sua vida pretérita e os valores por si ora defendidos foram assinaladas. Foram igualmente abordados o seu histórico criminal, o contexto e os contornos do seu projeto político, tendo os riscos do extremismo político sido devidamente assinalados."

Facto é que a rubrica "Diga de sua (in)justiça" começou com a entrevista feita por Bruno Caetano para apresentar Mário Machado:



Depois de Mário Machado ter falado da sua família e do seu percurso até se tornar um nacionalista convicto, Bruno Caetano pergunta-lhe: Fala dos erros que cometeu. Esteve preso, inicialmente em 1995 - porquê?

MM: Em 1995 aconteceu um confronto entre africanos e nacionalistas no Bairro Alto, em Lisboa, e durante esse confronto há um grupo de cerca de 10 indivíduos do grupo de nacionalistas de que eu fazia parte que se afasta do grupo inicial, e a cerca de 2 km de distância,  já no Chiado, ataca um indivíduo de etnia africana, ou de raça africana, que vem a falecer dois dias mais tarde. Infelizmente, devido ao falhanço total da nossa Justiça, estive dois anos e meio preso. Ao fim desse tempo todo, tinha apenas 18 anos de idade, era militar, estava na Força Aérea como voluntário, ao fim de dois anos e meio os meritíssimos juízes disseram que se tinham enganado, e fui absolvido. E ainda hoje é um fardo que carrego. Basta ir à internet e qualquer página refere "Mário Machado envolvido no homicídio de Alcindo Monteiro". É pesadíssimo para mim e para a minha família, e não corresponde à realidade.

[ Bruno Caetano vai assentindo com a cabeça. Deixa passar em branco esta versão do "os meritíssimos juízes disseram que se tinham enganado, e fui absolvido". A verdade é que nesse mesmo julgamento Mário Machado foi condenado a quatro anos e três meses de prisão - depois reduzido para dois anos e meio - não pelo homicídio, é certo, mas pelos crimes de agressões físicas que cometeu nessa noite. Em 2005, em entrevista ao Correio da Manhã, ainda não lhe tinha ocorrido a versão de ter sido vítima do "erro dos meritíssimos juízes". Na sua versão dessa altura, terá sido vítima dos negros que resolveram atacar o seu grupo de amigos, e também do politicamente correcto: "Estávamos a festejar o Dia de Portugal quando um grupo de negros se acercou de um grupo de ‘skins’. Eles tentaram atacar os ‘skins’ que foram de imediato pedir ajuda aos camaradas. Estalou uma batalha racial nas ruas do Bairro Alto, onde negros procuravam ‘skins’, e ‘skins’ negros para a confrontação. Foi um negro a morrer e não um ‘skin’. Se fosse ao contrário, um branco a morrer, era apenas mais um crime. Mas como foi uma “vítima da colonização e dos nossos antepassados que foram para África”, caiu o céu e a trindade. Foram condenados a 203 anos de cadeia por uma morte. Já morreram 355 portugueses na África do Sul, e nunca vi ninguém ser julgado por genocídio."


O entrevistador da TVI não o confronta com os factos, nem com a falta de congruência das duas versões, nem com a estranha ausência de skins feridos nas urgências dos hospitais na sequência do tal "ataque de gangues de negros", ausência essa que inviabiliza a versão de 2005. Talvez, aliás, Mário Machado tenha mais algumas versões sobre esse caso, mas para mim, que não sou paga para ser jornalista da TVI, nem tive a ideia de entrevistar o Mário Machado e por isso não tenho obrigação de me preparar extremamente bem para a entrevista, basta-me esta que encontrei entre as primeiras páginas que li sobre a personagem.

Pergunto ainda: porque é que o jornalista da TVI Bruno Caetano vai fazendo aqueles sinais de assentimento enquanto Mário Machado lhe conta histórias da carochinha sobre os crimes raciais pelos quais foi acusado? É a isto que a TVI chama "abordar o seu histórico criminal"? ]


Mário Machado continua: "Fui o primeiro português, em Portugal, depois do 25 de Abril, a ser condenado a uma pena de prisão por escrever um texto na internet. Não era um texto ofensivo, não era um texto a desejar morte a ninguém, não era um texto a desejar a morte a ninguém nem a injuriar ninguém, apenas um texto a pedir e a apelar aos nacionalistas para a mobilização, apenas isso - e por esse texto levei dois anos e meio de prisão. Portanto, quando falam do Estado Novo e da liberdade de expressão no tempo de Salazar, eu gostaria de saber quem é que esteve, no tempo do professor dr. Oliveira Salazar, dois anos e meio preso por escrever um texto. Gostaria de saber. Porque em Democracia isso já me aconteceu a mim".

[ Bruno Caetano continua a assentir com a cabeça. Já eu, que tenho a mania de desconfiar quando a esmola é demasiado grande, fui investigar um pouco: se bem entendi, o tal texto que "não era ofensivo nem desejava a morte de ninguém, que era apenas um apelo à mobilização", era sobre a procuradora Cândida Vilar, que propôs a prisão preventiva de Mário Machado num processo por discriminação racial, e que foi responsável pela acusação de 36 skins. Cito a notícia do Expresso sobre o conteúdo dessa carta aberta:
"As ideias são como os tratados: pouco vale firmá-los com a nossa tinta quando não somos capazes de confirmá-las com uma gota do nosso sangue". À citação de Ramalho Ortigão, acrescentou: "Eu estou a dar o meu sangue, espero que todos vós possam fazer o mesmo".
Na "carta aberta a todos os camaradas", Mário Machado apelava aos nacionalistas para não esquecerem o nome do rosto da "nova inquisição": a procuradora Cândida Vilar. O líder dos skinheads tinha acabado de receber a acusação assinada pela procuradora, estava convencido que ia ser libertado mas continuou preso e não aguentou a revolta. O Ministério Publico acusa-o de ameaça, coação e difamação.
A carta aberta foi publicada no Forum Nacional, espaço da Internet frequentado por skinheads, e a magistrada passou a ter protecção policial todos os dias.

Para que fique registado: na TVI, Mário Machado distorceu os factos para se vender como vítima da falta de liberdade de expressão - "dois anos e meio preso por escrever um texto", disse ele - e ninguém o desmentiu. Mais um exemplo realmente extraordinário do que a TVI entende por "abordar o seu histórico criminal".


Pior ainda: procurei este programa na página youtube da TVI, e o único filme que encontrei foi esta parte da entrevista. Sublinho: a TVI tem esta entrevista publicada no youtube com a seguinte legenda: "Nacionalista desde da adolescência, esteve preso por dois anos e meio por escrever um texto na internet a apelar à mobilização dos nacionalistas."

Talvez fosse boa ideia a direcção da TVI dar uma vista de olhos pelo que anda a ser publicado pela TVI no youtube. A sensação que dá, sinceramente, é que ou aquele comunicado é blablabla de circunstância, ou então a direcção não faz a menor ideia do que anda a acontecer na casa pela qual é responsável. ]


Mário Machado: A Nova Ordem Social é um movimento político. O nosso objectivo é em 2020 tornarmo-nos um partido político. Por toda a Europa e por todo o mundo, vimos no Brasil e nos EU, sopram ventos de mudança, e nós somos esse tornado que vai aparecer na sociedade portuguesa. Defendemos o nacionalismo e o patriotismo, e defendemos aquilo que mais ninguém defende, que é colocar os portugueses em primeiro lugar."

Voltamos ao estúdio.

[ Já vamos em três minutos e meio de programa, e até agora a TVI acolheu candidamente e transmitiu para o país todas as patranhas que o Mário Machado lhe quis contar sobre o seu passado. ]

No estúdio, Goucha informa que a ideia de entrevistar Mário Machado foi de Bruno Caetano, diz que só foi informado no dia 26 de Dezembro, e que aceitou porque "vivemos numa Democracia e todas as pessoas com os seus pontos de vista serão bem-vindos." Pergunta a Bruno Caetano porque é que convidou Mário Machado, e aquele responde que o convidou porque (vou transcrever de novo): "tive conhecimento do movimento Nova Ordem Social, nomeadamente também da manifestação que vai realizar já no início de Fevereiro, que vai celebrar Salazar, e isso suscitou-me muita curiosidade. Quando ele diz que é necessário um, ou dois, ou três Salazares, leva-nos a pensar que temos de ouvir as ideias deste homem."

Goucha interrompe: "E temos que ouvir, porquê? Porque achas também que faz falta um Salazar?"
Resposta de Bruno Caetano: "Em certas partes da vida de Salazar acho que faz falta, nomeadamente no que diz respeito a autoridade."

[ Ah, bom, finalmente entendo porque é que Bruno Caetano fazia tantos sinais de assentimento com a cabeça durante a entrevista que fez a Mário Machado: ele não estava a confrontá-lo, estava a ouvir as suas ideias, e até concorda com algumas delas. O trecho "As opiniões e a visão histórica expressas por Mário Machado (...) foram enquadradas por visões alternativas às por si sustentadas", do comunicado da TVI, não se aplica ao jornalista da TVI Bruno Caetano. Em momento algum das suas entrevistas ele cuidou de apresentar visões alternativas. Pelo contrário: até afirmou que concorda em parte com as ideias de Mário Machado, e, como se viu, usou o seu poder na TVI para as difundir.   

Goucha optou por não confrontar o colega responsável por aquela rubrica com o que tinha acabado de afirmar, e preferiu continuar a exibição da entrevista anteriormente gravada. De modo que também não compreendo muito bem as afirmações posteriores de Goucha, quando diz - cito da notícia do Observador - que “todas as ideias podem ser discutidas na televisão” desde que exista o devido contraponto. E, mais à frente: "É bom recordar que num programa recente da RTP os telespectadores elegeram a figura de Salazar como o maior português de sempre. Concordei? Claro que não. Mas é uma figura que faz parte da nossa História, uma figura incontornável do século XX. É bom que se fale dela com tudo aquilo que ela implica até para não voltarmos a ter outros Salazares."

Era bom, era. Mas, infelizmente, no momento em que alguém com responsabilidades dentro da TVI afirma no seu programa que em certas coisas Salazar faz falta, não ocorreu a Goucha falar "de tudo aquilo que isso implica, até para não voltarmos a ter outros Salazares". Simplesmente, passou adiante.

Lembro que há alguns anos aconteceu algo semelhante num programa de TV alemão. Uma pessoa com responsabilidades no programa disse que "nem tudo o que Hitler fez era mau. Algumas coisas eram boas. Por exemplo, os valores da família."  Perdeu o emprego logo ali, porque aquela empresa de TV não queria ter o seu nome associado a pessoas com tamanha falta de informação política. E não, não foi um delito de opinião. Foi mesmo por lacunas na cultura geral que não se podem admitir em quem trabalha numa estação de televisão. ]

Em estúdio, Goucha nem sequer pestaneja, e retoma a entrevista de Bruno Caetano a Mário Machado:

Bruno Caetano: Mário, porque é que quer ser o novo Salazar?
Mário Machado: Primeiro, o professor dr. Oliveira Salazar era honesto. Terminou a sua vida exactamente com o mesmo dinheiro com que entrou para a política. Hoje em dia não existe nenhum político nessa condição. Depois, foi um homem que investiu e muito nas obras públicas. Foi um homem que livrou Portugal de uma II GM. Todos os dias nos cafés (...)

Nem Bruno Caetano nem Goucha alertam Mário Machado para a gravidade das acusações que fez ("hoje em dia nenhum político é honesto"), nem lhe pediram provas do que afirma. Goucha deixou passar esta afirmação como se fosse indiscutível. ]

Retomo a transcrição da entrevista de Bruno Caetano a Mário Machado: Todos os dias nos cafés, na rua, nos ginásios, um pouco por todo o lado, nós ouvimos a frase "Salazar faz muita falta" ou "Salazar fazia muita falta" ou "Já não é com um Salazar, precisávamos de dois ou três". Nós ouvimos isso recorrentemente. Por outro lado, Salazar conseguiu que existisse o respeito pela autoridade. Nesse tempo ainda se respeitavam os mais antigos, os netos respeitavam os avós, respeitavam os pais, havia um respeito pela autoridade policial. Nada disso existe hoje em dia, nós vemos é uma criminalidade galopante.

Goucha retoma a palavra e dá início a uma verdadeira esgrima de argumentos sobre Salazar. Mas perde o primeiro round: Mário Machado equipara a censura ditatorial ao politicamente correcto, e mais uma vez fica sem resposta. Soma e segue.

Goucha: Diz que "ninguém era preso por dois anos e meio por ter escrito um texto. Então não? As pessoas eram exiladas porque tinham pensamentos que divergiam do pensamento único que ele tinha imposto a uma sociedade!
Mário Machado: Mas hoje em dia também existe esse estigma do pensamento único. Chama-se "politicamente correcto". Aliás: o Manuel e a Maria já foram trucidados nas redes sociais, e não só, por me terem convidado para estar aqui hoje. O que mostra que não é fácil ouvir opiniões discordantes. E nós temos que situar Salazar à época. Era outra época, outro tempo.
Goucha: Era um homem honesto, sim senhor, mas tacanho, com uma visão rural do país, que não prometia nem inovação nem mudança. Nem permitia opiniões dissidentes!
Mário Machado: Não sei se isso é bem assim...

Goucha: Sabe porque é que ninguém era preso por escrever um texto? Porque não podia escrever o texto, ninguém o publicava! Havia censura no teatro, censura nas artes, na imprensa...
Mário Machado: Vamos comparar Salazar com todos os líderes...
Goucha: ...era um ditador!
Mário Machado: Exactamente. Com todos os líderes à época, vamos pesá-los na balança e vamos ver quem é que foi mais correcto, menos correcto, quem é que foi mais tolerante... E se compararmos Salazar com Hitler, com Mussolini, com Estaline, com...
Goucha: Curiosamente, começam todos por uma ideia de nacionalismo e patriotismo, se bem que eu entenda que nacionalismo pode não ter a ver com patriotismo. São coisas distintas.
Mário Machado: Sim. O PCP considera-se patriota, mas não é nacionalista.

 
Goucha muda de tema. Concorda que já não há respeito por pessoas que nos merecem respeito, mas isso é uma crise de valores. E pergunta: precisamos de um Salazar para impor esses valores?!

 
Mário Machado: Sim, porque vivemos num regime e num sistema em que se dá mais valor ao dinheiro, ao materialismo e ao individualismo, e no tempo de Salazar dava-se mais valor às pessoas, à família. Esse conceito desapareceu. E tanto que desapareceu que temos hoje várias estatísticas que o comprovam. Por isso é que acho que nesse aspecto Salazar teve alguma influência nesse respeito pelos mais antigos, que hoje não temos. Hoje os mais velhinhos são as pessoas mais facilmente descartáveis da nossa sociedade. Foram empurrados para canto. Nesse tempo, isso não acontecia. Porquê? Devido ao materialismo e ao individualismo que grassa hoje em dia. Por exemplo [segundo a Pordata] no tempo de Salazar em cada 100 casamentos 0,6 terminavam em divórcio.
Maria Cerqueira Gomes: Mas as pessoas eram infelizes...
Mário Machado: Hoje em dia, 60 terminam em divórcio.
Goucha: A Pordata também diz que em 1970 - já estava Marcelo Caetano com a sua primavera marcelista, que também falhou - em cada 100 portugueses 25 eram analfabetos. Portanto: é um homem que promove também o analfabetismo, a falta de cultura - que não convém a nenhum governante deste género.
Mário Machado: E hoje em dia é igual. Hoje em dia é igual. Mas repare: isso não é correcto. Os dados são verídicos, mas repare que ele herdou um Portugal rural e um Portugal analfabeto.
Goucha: Ele promoveu um Portugal rural e analfabeto! Ele dizia: "não se preocupem, sejam honestos, vivam numa casinha pobrezinha e honrada, que nós vos governaremos". "Nós vos governaremos" - nós não queremos mais isso, nós queremos ter a palavra.
Mário Machado: Mas livrou-nos de uma guerra mundial...
Goucha: Livrou, fazendo um jogo ambíguo e vendendo volfrâmio aos alemães.
Mário Machado: Mas salvou-nos de uma guerra. Entre salvar os portugueses da morte, e vender o volfrâmio, acho que ele esteve muito bem.
Goucha: Condenou portugueses ao exílio...
Mário Machado: E quantos judeus salvou, por exemplo?
Goucha: ...e condenou portugueses que estavam em Goa, Damão e Diu, quando o território era administrado por Portugal - lembro-me bem dessa fase, tenho memória disso, porque sou mais velho que o Mário - ele foi para a televisão dizer "só os vejo vitoriosos ou mortos". Porque ele não tolerava a rendição. Portanto: eu não estou a tirar méritos a António de Oliveira Salazar, porque certamente ele foi importante em vinte anos da História deste país, e ninguém lhe tira o seu papel na História. Eu não quero um Salazar. Eu quero é esgrimir argumentos consigo, porque isto é o que nos permite a Democracia.

E retomo o segundo vídeo do post:



No segundo vídeo, a entrevista de Bruno Caetano a Mário Machado já terminou.



Goucha e Mário Machado estão a falar das colónias. Mário Machado queixa-se dos democratas que "espoliaram milhões de portugueses que tinham toda uma vida no nosso Ultramar e tiveram de voltar para cá sem nada".
Goucha: A culpa é de quem começou uma guerra colonial injusta durante décadas, quando se poderia ter encontrado, tal como no Reino Unido, soluções para uma transição com os nossos interesses acautelados.
Mário Machado não ouve - não está ali para ouvir - e fala ao mesmo tempo que Goucha: Então que é que Salazar tinha a ver com isso? Já nem existia!
Goucha: Mas é a herança de Salazar!
Mário Machado: Essa transição, essa descolonização brutal que nós sofremos, de que os portugueses foram vítimas, foi culpa desses democratas que hoje estão num pedestal, como por exemplo o dr. Mário Soares.  

[ Neste momento são interrompidos por Maria Cerqueira Gomes, que muda de assunto. Pergunto: onde está o apregoado confronto de ideias? Goucha vinha preparado para rebater o louvor a Salazar, mas Mário Machado conseguiu dizer o que lhe apeteceu, e quase não foi confrontado nem com os factos nem com os valores da nossa sociedade democrática. Mário compara Salazar com os líderes da sua época, citando apenas os ditadores, e Goucha não lhe pergunta porque é que só se lembra de mencionar ditadores, quando em tantos outros países ocidentais havia regimes democráticos; Mário Machado diz que no tempo de Salazar não havia divórcios e Goucha não lhe explica que, por causa da Concordata de 1940, na prática o divórcio estava vedado à maior parte dos casados; Mário Machado louvou Salazar por ter salvado portugueses da morte e desvalorizou a venda do volfrâmio, e Goucha não o confrontou com o cinismo da sua posição: para salvar a vida de portugueses, fornecer ao exército alemão ainda mais meios para matar os filhos dos outros, os dos países que combatiam pela Liberdade e pela Democracia; Mário Machado faz o choradinho "roubaram-nos as colónias!" e Goucha deixa passar isso sem comentário. ]

A propósito de Mário Machado defender que é importante voltar aos valores do tempo de Salazar, Maria Cerqueira Gomes pergunta: Como é que uma pessoa que defende regras, respeito e autoridade policial depois está envolvida em tantos momentos que levaram à prisão e que não são nada coerentes com essa visão de respeito e de autoridade?

[ Maria Cerqueira Gomes está a falar com alguém condenado por espancar barbaramente por motivos racistas, e por torturar com o maior dos sadismos. Está a falar com um homem cujo cadastro criminal revela uma personalidade apta a comandar o massacre de Wiriyamu e os piores torturadores da PIDE. Mas pergunta-lhe se não vê alguma incoerência entre os seus actos e os valores de Salazar.

Que incoerência podia haver, Maria Cerqueira Gomes?! Que imagem tão positiva ("fofinha"?) é essa que Maria Cerqueira Gomes tem de Salazar, que a leva a assumir que há incoerência entre os seus valores e o virulento racismo e sadismo de Mário Machado? Que imagem tão positiva ("fofinha"?) é essa que Maria Cerqueira Gomes tem de Mário Machado, que a leva a assumir que o seu respeito pelas regras, pela ordem e pela autoridade policial é um respeito genérico, e não o único respeito de que ele é, eventualmente, capaz: pelas regras racistas e nacionalistas, pela ordem racista e nacionalista e pela autoridade policial racista e nacionalista?

Entretanto, pergunto-me se era a esta passagem do programa que o comunicado da TVI se refere quando afirma que "as contradições entre a sua vida pretérita e os valores por si ora defendidos foram assinaladas". ]

Para mostrar que o passado não conta, Mário Machado conta outra vez a mesma versão: diz que vai começar logo por 1995, quando passou dois anos na cadeia por engano. Destruíram-lhe a vida, diz ele, e acrescenta: por um erro do sistema gravíssimo.

[ Maria Cerqueira Gomes está tão mal preparada que não o confronta com os factos. Pelos vistos, não viu previamente a entrevista do Bruno Caetano, não leu outras entrevistas do Mário Machado, não investigou os factos por trás das afirmações dele. Foi para a TVI entrevistar um personagem deste calibre sem ter lido nem investigado.

Os factos são: em 1997, no julgamento relativo aos crimes de 1995, não foi condenado pelo homicídio, mas levou uma pena de mais de quatro anos de prisão pelas agressões físicas que cometeu nessa noite. Não passou dois anos na cadeia "por engano". E em 2010 foi julgado por roubo, sequestro e tortura com os níveis de brutalidade descritos nesta notícia do DN. ]

Maria Cerqueira Gomes não sabe nada disto, e tenta confrontá-lo de outro modo: Acha que esse erro do sistema  [ "erro do sistema"!!! ] também foi influenciado por alguma postura sua, por palavras suas, textos seus?
Mário Machado bem podia beijar-lhe os pés nesse momento, em sinal de gratidão, mas limita-se a aceitar o presente que ela lhe oferece de bandeja, respondendo: Não, não. Simplesmente estava no sítio errado à hora errada com 18 anos de idade, com um grupo de amigos. E como é óbvio isso teve repercussões na minha vida, durante muito tempo fui alimentado por esse ódio. Era mais o ódio ao sistema que o amor. Hoje a minha filosofia de vida mudou, hoje não é o ódio ao outro que me alimenta, mas o amor ao meu povo, o amor à minha pátria, e parecendo que não, essa mudança também influenciou o meu modo de estar.

Depois diz que aproveitou o tempo na prisão para terminar a licenciatura em Direito.

Goucha entra em campo: Não acha que o discurso nacionalista é muito marcado pelo ódio?
Mário Machado: Sim, é um bocado.
Goucha: O seu não é?
Mário Machado: O meu já foi. Como disse, foi a gasolina que me alimentou durante muitos anos. Mas está errado. Hoje em dia, tento ensinar aos meus camaradas que não é isso que tem de nos mover. Não temos de odiar os outros, temos é que amar os nossos, estar ao lado dos nossos.

Maria Cerqueira Gomes ri-se:  Gostar de Salazar e dizer "camaradas" é curioso, não é? Hihihihi.

Goucha diz que quer pegar na questão do ódio, nomeadamente a pessoas de outras etnias e culturas, mas primeiro vai "confrontar um pouco a opinião dos portugueses".

[ Mário Machado continuou a ter carta branca para dar livre curso ao discurso branqueador das suas actividades e da sua ideologia, sem que Goucha ou Maria Cerqueira Gomes lhes soubessem dar o devido contraponto. Mas no comunicado da TVI diz-se o contrário.  

O badalado confronto com a opinião dos portugueses foi sobre a necessidade de um novo Salazar. E pergunto à TVI se já chegamos ao ponto em que o regresso da ditadura, da ordem colonial, do racismo puro e duro, da economia na mão de meia dúzia de famílias e da polícia política são meras questões de opinião, e se um dia destes também vão fazer sondagens à população para saber dela se "será que em certos casos é preciso que o marido bata na mulher?", "será que precisamos da tortura?", "será que precisamos do direito da pernada?", "será que devíamos recuperar as nossas antigas praças no norte de África?", e por aí fora. 

Sugiro que ouçam esse momento - no vídeo do programa, é a partir de 1:15:30. A repórter da TVI no Cais do Sodré, Susana Gonçalves, perguntou a algumas pessoas "acha que o país precisa de um novo Salazar?" e relata que, curiosamente, os mais velhos concordam que um novo Salazar fazia falta, enquanto os mais novos o recusam liminarmente. Passa alguns excertos das entrevistas, nas quais, entre outros motivos, algumas pessoas se queixam da política e dos políticos. A determinado momento um entrevistado diz que "está bem assim, podia melhorar algumas coisas mas não é tão extremo". A entrevistadora pede-lhe que dê exemplos do que é preciso mudar, e ele começa por falar da responsabilidade dos cidadãos: "os cidadãos também deviam começar a mudar alguma coisa, há muita coisa que podia ser melhorada..." - e nesse momento (1:19:05) a entrevistadora sugere-lhe que fale dos políticos. O que me suscita uma questão: quando a TVI  mostra reportagens de rua está a mostrar o que o povo pensa ou o que um repórter da TVI quer que as pessoas digam, para mostrar na televisão? Quais são as intenções da TVI ao permitir este comportamento dos seus repórteres? A TVI tem consciência de que ao sugerir e transmitir discursos de acusações tão vagas quanto peremptórias aos políticos está a participar na estratégia populista de corrosão da Democracia?  ]



No terceiro vídeo fala-se de racismo. Mário Machado afirma que não é racista e que até tem muitos amigos africanos, e também não é xenófobo.

Diz ele: O que acontece em relação aos africanos (...) é que existe um problema dessa comunidade em relação ao crime, e nós queremos poder discutir abertamente sobre este assunto. A Nova Ordem Social é uma organização que se considera anti-racista, e consideramos que os maiores racistas neste momento em Portugal e os maiores ataques até vêm da própria comunidade negra, quando escolhem as suas vítimas - aqueles gangs que existem um pouco por toda a parte - unica e exclusivamente vítimas brancas. 

[  Isto foi dito na TVI, e passou sem qualquer comentário ou contraditório. Vale a pena voltar a ler a parte dos violinos no comunicado da TVI, nomeadamente a parte sobre o compromisso editorial "com o respeito pela dignidade da pessoa humana e com a condenação do racismo".

Goucha não se lembrou de pedir a Mário Machado se podia tirar o casaco para mostrar se ainda tem as suásticas tatuadas nos braços ou se já tatuou smileys por cima delas. Aparentemente, partirá do princípio que está perante uma pessoa de bem, e não é preciso confrontá-la realmente com os seus actos e as suas palavras no passado: se o cidadão Mário Machado diz que já não é racista, há que acreditar e andar para a frente. Tanto mais que agora vai começar uma fase nova, e quer criar um partido. Há que dar oportunidades a este rapaz que foi vítima de erros judiciais do sistema, coitado... ]

Maria Cerqueira Gomes avisa que o tempo chegou ao fim, e revela que a mãe do Mário mandou beijinhos ao Goucha.

Goucha ainda faz uma última pergunta: Uma curiosidade que tenho face a muitas coisas que li nos últimos anos, ainda não estava preso. Como sabe, eu vivo com um homem há vinte anos. Tem alguma coisa contra mim?

Mário Machado sorri, e de novo aceita de bom grado o presente que lhe é oferecido: Se tivesse, não estava aqui hoje, não é? Hahaha.

Goucha: Obrigado.

[ "Obrigado"?! Mais nada? Nem lhe pergunta qual é a sua opinião actual sobre os homossexuais, nem o que o levou a mudar de opinião, nem nada? ]

Foi isto.
Mas a direcção da TVI acredita que pode escrever um belo naco de prosa poética e que nós vamos cair nessa conversa como os seus colaboradores caíram na conversa de um dos fascistas mais violentos do país.


2 comentários:

Lucy disse...

Valha-nos Deus!

Helena Araújo disse...

Depois da publicação deste post, deram-me um link para o programa. O presente texto contém algumas alterações, que resultam da consideração dos factos patentes no filme completo. Partes foram eliminadas (porque se referiam a questões que levantei quando não tinha ainda acesso ao filme integral do programa); as partes do texto acrescentadas ao original foram assinaladas a azul.