(fonte)
Tenho andado a pensar numa questão que levantaram a propósito do
caso Ricardo Robles ("então a Segurança Social anda a vender
património ao desbarato?"), e tentei fazer as contas. Se houvesse por aí algum economista que desse uma mãozinha...
Antes de mais, pergunta-se:
Antes de mais, pergunta-se:
- Deve a Segurança Social ser um agente de especulação imobiliária e gentrificação? Deve usar o património do Estado para criar ou permitir criar apartamentos de luxo nos bairros populares do centro? Sobre isso, não tenho certezas. Mas sei uma coisa: o Estado não pode vender o seu património ao desbarato, deixando que outros se aproveitem das mais-valias. Pelo que, antes de vender, tem de definir para que uso vende o prédio. Se ficar vinculado por várias décadas à função de habitação para famílias sem recursos deve ter um preço, se ficar livre para o melhor uso que o mercado lhe quiser atribuir deve ter um preço bem superior.
E tenho a certeza que o La Palisse não diria melhor que isto.
- Quanto é que a venda daquele prédio podia ter rendido à Segurança Social? Porque é que não fez ela as obras e o pôs no mercado para arrendamento ou venda, seja a preços sociais por ser esse o seu principal objectivo, seja a preços de uso para alojamento local, para conseguir o máximo valor possível para os cofres do Estado?
Tentando fazer as contas:
Os factos: o prédio estava num estado deplorável, e condicionado por cinco contratos de arrendamento, embora três desses cinco inquilinos não usassem os espaços devido ao grau de degradação do edifício. Só um dos apartamentos arrendados estava habitado, e uma das lojas era usada como restaurante. Área total do prédio: 728 m²; área útil somada dos apartamentos: 355 m²; as três lojas na rua têm as seguintes áreas: 123 m², 54 m², 38 m².
1. Arrendamento a preços sociais:
Segundo as condições do programa "renda acessível" da Câmara Municipal de Lisboa, o prédio tinha capacidade para oito apartamentos T1 com 45 m² e rendas de 200 euros, perfazendo 19.200 euros por ano. Quanto às lojas: dado que é importante manter no bairro os antigos exploradores, e sabendo que Ricardo Robles propôs ao arrendatário da loja maior uma renda de 400 (que este não aceitou), admito que, com muita sorte, a Segurança Social pudesse receber das três lojas 12.000 euros por ano. Juntando os 19.200 dos apartamentos, teria um rendimento anual de 31.200 euros. Partindo da ilusão de que a Segurança Social tinha os 650.000 euros em caixa e não precisava de pagar juros de crédito, e tinha meios para fazer as negociações com os inquilinos, o acompanhamento das obras e a gestão do imóvel, ao fim de vinte anos recuperava o custo investido (e acabei de me desgraçar: nem contei a inflação nem o ganho da aplicação alternativa daqueles 650.000 euros) - mesmo a tempo de fazer novas obras de reforma...
Por sorte estamos a falar da Segurança Social, que existe para responder às necessidades das pessoas com mais dificuldades.
Mas - e isto seria tema para outro post - não se pode contar com privados para investir nestas condições. Suspeito que, mesmo sem qualquer lucro, as rendas de habitação deste prédio teriam de ser muito mais altas. As contas que faço em cima do joelho são estas: um empréstimo de 800 mil euros custaria 4.000 euros por mês; só para cobrir o custo do empréstimo, as três lojas juntas tinham de render 1.000 euros e cada um dos oito apartamentos de 45 m² 375 euros por mês.
2. Venda ou arrendamento pelo melhor preço possível.
O melhor preço possível seria o resultante de conseguir vender o prédio à Madonna, ou de o usar para alojamento local. Se pusessem os 11 apartamentos em alojamento local, a um valor médio de 100 euros por dia, e com uma taxa de ocupação de 300 dias por ano (tudo isto são valores extremamente optimistas - diria mesmo: irrealistas), mais os 12.000 anuais resultantes do arrendamento das lojas, teriam um rendimento anual de 342.000 euros. Deduzindo os custos ligados ao alojamento (taxa de 30% para a empresa que gere os apartamentos, despesas de água, electricidade, etc., reparações, reposição de material desgastado, o IMI e o imposto sobre os rendimentos no escalão mais alto), provavelmente não restariam mais do que 100.000 euros de lucro anual líquido.
Chegamos assim à base de cálculo para o valor de venda a um privado: qual deve ser o preço de um edifício que rende 100.000 euros anuais?
O que se diz na Alemanha é que só vale a pena comprar um edifício para rendimento se o seu custo for equivalente a 20 vezes a renda anual (ultimamente, devido à especulação, 30 vezes). Ou seja: o preço de mercado do prédio, se fosse usado para alojamento local, devia andar entre os 2 e os 3 milhões, segundo os cálculos para aquele cenário extremamente optimista.
[Nota à margem do tema: mesmo no mais optimista dos cenários, o lucro de Ricardo Robles não chegaria a meio milhão de euros, depois de descontado o imposto sobre a mais-valia. Ora, isso é muito diferente dos 5,7 milhões que andam nas parangonas dos jornais. A certos jornais, pelos vistos, não basta o epíteto "esquerda caviar" - precisam de torcer os títulos até chegar à categoria "esquerda caviar de fêmeas albinas de esturjão iraniano" ]
E assim chegamos a uma questão curiosa: quem no seu perfeito juízo pagaria 5,7 milhões de euros para ter um retorno de 100.000 euros por ano? Pelos vistos os investidores ainda estão no seu perfeito juízo, porque o edifício esteve à venda durante seis meses e ninguém o comprou.
Pergunto-me se aquela loucura de preço não é uma estratégia do agente avaliador para aquecer o mercado. Quer dizer: perante anúncios desses, os investidores vão pensar que o outro prédio que a mesma empresa tem à venda por "apenas" três milhões é uma pechincha, e compram sem discutir muito. Ou então, alguém terá resolvido montar uma armadilha a um vereador do Bloco, e ele caiu como um patinho. Mas isto sou eu, que hoje acordei virada para teorias da conspiração.
---
ADENDA (6.8.2018): Explicaram-me no facebook que "o raciocínio está incorrecto porque num mercado especulativo a rentabilidade por via do arrendamento é apenas uma pequena parte da fotografia. Pode ter algum peso na decisão de investimento, mas não muito. Os especuladores em geral jogam no curto prazo e se acreditarem que existe uma bolha, se comprarem, digamos, por 4 milhoes e venderem 6 meses depois por 4,5, têm um lucro anualizado de mais de 20%. Isto para não falar do facto de que lisboa neste momento é uma lavandaria para mafiosos e muitos investidores são russos, chineses e brasileiros com capitais de proveniência duvidosa. quem quer branquear umas massas não se importa de perder uns cobres..."
Moral da história: fiz figura de "pensa muito e vê pouco", que vergonha, vou já arranjar um buraco onde me esconder (triste vida).
Das contas que faço, sobra apenas esta constatação: não se pode contar com os privados para garantir habitação a preço acessível. Mesmo sem o efeito especulação, os custos de (boa) construção são incompatíveis com rendas baixas. E sobra esta pergunta: a quem é que a Segurança Social devia ter vendido, e por que preço? ---
E tenho a certeza que o La Palisse não diria melhor que isto.
- Quanto é que a venda daquele prédio podia ter rendido à Segurança Social? Porque é que não fez ela as obras e o pôs no mercado para arrendamento ou venda, seja a preços sociais por ser esse o seu principal objectivo, seja a preços de uso para alojamento local, para conseguir o máximo valor possível para os cofres do Estado?
Tentando fazer as contas:
Os factos: o prédio estava num estado deplorável, e condicionado por cinco contratos de arrendamento, embora três desses cinco inquilinos não usassem os espaços devido ao grau de degradação do edifício. Só um dos apartamentos arrendados estava habitado, e uma das lojas era usada como restaurante. Área total do prédio: 728 m²; área útil somada dos apartamentos: 355 m²; as três lojas na rua têm as seguintes áreas: 123 m², 54 m², 38 m².
1. Arrendamento a preços sociais:
Segundo as condições do programa "renda acessível" da Câmara Municipal de Lisboa, o prédio tinha capacidade para oito apartamentos T1 com 45 m² e rendas de 200 euros, perfazendo 19.200 euros por ano. Quanto às lojas: dado que é importante manter no bairro os antigos exploradores, e sabendo que Ricardo Robles propôs ao arrendatário da loja maior uma renda de 400 (que este não aceitou), admito que, com muita sorte, a Segurança Social pudesse receber das três lojas 12.000 euros por ano. Juntando os 19.200 dos apartamentos, teria um rendimento anual de 31.200 euros. Partindo da ilusão de que a Segurança Social tinha os 650.000 euros em caixa e não precisava de pagar juros de crédito, e tinha meios para fazer as negociações com os inquilinos, o acompanhamento das obras e a gestão do imóvel, ao fim de vinte anos recuperava o custo investido (e acabei de me desgraçar: nem contei a inflação nem o ganho da aplicação alternativa daqueles 650.000 euros) - mesmo a tempo de fazer novas obras de reforma...
Por sorte estamos a falar da Segurança Social, que existe para responder às necessidades das pessoas com mais dificuldades.
Mas - e isto seria tema para outro post - não se pode contar com privados para investir nestas condições. Suspeito que, mesmo sem qualquer lucro, as rendas de habitação deste prédio teriam de ser muito mais altas. As contas que faço em cima do joelho são estas: um empréstimo de 800 mil euros custaria 4.000 euros por mês; só para cobrir o custo do empréstimo, as três lojas juntas tinham de render 1.000 euros e cada um dos oito apartamentos de 45 m² 375 euros por mês.
2. Venda ou arrendamento pelo melhor preço possível.
O melhor preço possível seria o resultante de conseguir vender o prédio à Madonna, ou de o usar para alojamento local. Se pusessem os 11 apartamentos em alojamento local, a um valor médio de 100 euros por dia, e com uma taxa de ocupação de 300 dias por ano (tudo isto são valores extremamente optimistas - diria mesmo: irrealistas), mais os 12.000 anuais resultantes do arrendamento das lojas, teriam um rendimento anual de 342.000 euros. Deduzindo os custos ligados ao alojamento (taxa de 30% para a empresa que gere os apartamentos, despesas de água, electricidade, etc., reparações, reposição de material desgastado, o IMI e o imposto sobre os rendimentos no escalão mais alto), provavelmente não restariam mais do que 100.000 euros de lucro anual líquido.
Chegamos assim à base de cálculo para o valor de venda a um privado: qual deve ser o preço de um edifício que rende 100.000 euros anuais?
O que se diz na Alemanha é que só vale a pena comprar um edifício para rendimento se o seu custo for equivalente a 20 vezes a renda anual (ultimamente, devido à especulação, 30 vezes). Ou seja: o preço de mercado do prédio, se fosse usado para alojamento local, devia andar entre os 2 e os 3 milhões, segundo os cálculos para aquele cenário extremamente optimista.
[Nota à margem do tema: mesmo no mais optimista dos cenários, o lucro de Ricardo Robles não chegaria a meio milhão de euros, depois de descontado o imposto sobre a mais-valia. Ora, isso é muito diferente dos 5,7 milhões que andam nas parangonas dos jornais. A certos jornais, pelos vistos, não basta o epíteto "esquerda caviar" - precisam de torcer os títulos até chegar à categoria "esquerda caviar de fêmeas albinas de esturjão iraniano" ]
E assim chegamos a uma questão curiosa: quem no seu perfeito juízo pagaria 5,7 milhões de euros para ter um retorno de 100.000 euros por ano? Pelos vistos os investidores ainda estão no seu perfeito juízo, porque o edifício esteve à venda durante seis meses e ninguém o comprou.
Pergunto-me se aquela loucura de preço não é uma estratégia do agente avaliador para aquecer o mercado. Quer dizer: perante anúncios desses, os investidores vão pensar que o outro prédio que a mesma empresa tem à venda por "apenas" três milhões é uma pechincha, e compram sem discutir muito. Ou então, alguém terá resolvido montar uma armadilha a um vereador do Bloco, e ele caiu como um patinho. Mas isto sou eu, que hoje acordei virada para teorias da conspiração.
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ADENDA (6.8.2018): Explicaram-me no facebook que "o raciocínio está incorrecto porque num mercado especulativo a rentabilidade por via do arrendamento é apenas uma pequena parte da fotografia. Pode ter algum peso na decisão de investimento, mas não muito. Os especuladores em geral jogam no curto prazo e se acreditarem que existe uma bolha, se comprarem, digamos, por 4 milhoes e venderem 6 meses depois por 4,5, têm um lucro anualizado de mais de 20%. Isto para não falar do facto de que lisboa neste momento é uma lavandaria para mafiosos e muitos investidores são russos, chineses e brasileiros com capitais de proveniência duvidosa. quem quer branquear umas massas não se importa de perder uns cobres..."
Moral da história: fiz figura de "pensa muito e vê pouco", que vergonha, vou já arranjar um buraco onde me esconder (triste vida).
Das contas que faço, sobra apenas esta constatação: não se pode contar com os privados para garantir habitação a preço acessível. Mesmo sem o efeito especulação, os custos de (boa) construção são incompatíveis com rendas baixas. E sobra esta pergunta: a quem é que a Segurança Social devia ter vendido, e por que preço? ---
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