15 agosto 2018

é sempre bom lembrar (a propósito de a Web Summit ter convidado a Le Pen)

Pelo que li sobre a agitação do momento, o convite que a Web Summit fez à Le Pen para vir falar em Lisboa, os campos dividem-se entre os que dizem que a sua presença é inaceitável, e os que dizem que não se pode impedir ninguém de falar (a liberdade de expressão, a Democracia, o confronto, o poder da Razão, etc.).

Estou com o primeiro grupo, e diria mesmo mais umas coisinhas:

1. Das duas, cinco: ou os responsáveis da Web Summit são oportunistas e cínicos calculistas, ou os responsáveis do marketing da Web Summit são oportunistas e cínicos calculistas, ou os responsáveis do evento e os do marketing são oportunistas e cínicos calculistas. Ou então são todos demasiado ingénuos e sofrem todos de um nível assustador de ignorância política. Finalmente, também se pode dar o caso de simpatizarem com o fascismo. Em qualquer dos casos (seja oportunismo e cínico calculismo, seja ignorância, seja simpatia política) é bom que recebam a publicidade que estão a pedir. Esta assim:


2. Dizer que retirarão Le Pen da lista dos oradores se o governo português pedir é uma armadilha traiçoeira, passe o pleonasmo. Se me deixassem mandar, diria ao governo português para ficar quietinho, e pedia às pessoas de bem que tratassem do assunto. Por exemplo, partilhando aos milhares imagens como a que está aí em cima. Não é preciso discutir muito. Basta - ao abrigo da tal liberdade de expressão que eles tanto prezam - participarmos na construção de uma determinada imagem da Web Summit. Se não querem ter esta imagem, pois que façam por não a merecer.  

3. Passo um diálogo que encontrei num mural de facebook. Como está fechado, copio apenas as ideias, sem revelar o nome dos autores (sublinhados meus):

- Tratá-la como se fosse um Mário Machado não ajuda. Ela está no “sistema”, ela vai a votos e pelos vistos 34% da população de um dos países mais cultos e sofisticados do mundo votam nela. Eu não tenho receio do debate com esta gente, acredito mesmo que é a melhor maneira de os expor.

- É a melhor maneira de lhes abrir caminhos. Diversos caminhos, por todo o lado. Li o teu post e fiquei mesmo incomodada com o que li. A obrigação dos democratas é defender as democracias, lembrar a história, prevenir que se repitam erros do passado recente. Foi há muito pouco tempo e parece que nos esquecemos tão depressa de tudo o que aconteceu. Dar palco não expõe nada, apenas legitima um discurso, apenas normaliza um modo de pensar que há poucas décadas o mundo percebeu que deveria combater. Agora já não há combate, há aceitação, normalização, vontade de "ouvir para compreender o fenómeno". O fenómeno é sobejamente compreendido é estudado. Estamos apenas a dar-lhe asas para voar. É dramático, é assustador.

- Concordo contigo. Os países onde estes movimentos estão a ter mais apoio são precisamente os países que mais sofreram com o fascismo, isso ainda me intriga mais. Onde divergimos é na estratégia de combate, não a ouvir, não a contradizer, perder a oportunidade de a confrontar com a história não me parece a melhor opção. Afirmo mesmo que ela tem muito mais a perder do que a ganhar em participar num evento destes numa cidade destas.

- Quando se convida um orador é porque, à partida, consideramos que ele possa ter coisas interessantes para dizer. Ora essa premissa parece não existir. Para além disso, o palco da websummit não será o palco do contraditório. Será o palco para por microfones de lapela e ouvir. Mas mesmo que fosse o palco do contraditório, há discursos que, por si só, não devem ter direito a contraditório, porque isso pressupõe que primeiro tenham palco e depois contraditório. Não há galinha sem ovo. Quanto à tua conclusão, discordo em absoluto. Ela não tem nada a perder, só tem a ganhar. Mesmo que leve com um protesto monumental em cima e todo o contraditório possível, só tem a ganhar.

3. É sempre bom lembrar:



4. Quanto aos que dizem que isto se resolve com debate, informação e educação, gostava de partilhar algumas perplexidades:

Educação: concordo que é fundamental apostar na Educação, mas esse investimento só começa a dar frutos décadas mais tarde, e nós debatemo-nos com o problema hoje. Além disso, tenho algumas dúvidas sobre os seus frutos. Penso na Alemanha, que foi um país pioneiro na escolarização - e foi o que se viu. E penso muitas vezes no caso de Weimar, a cidade de Goethe e de Schiller, a cidade onde houve o cuidado de dar ao povo algumas luzes artísticas e intelectuais, a cidade que apostou na educação e nas artes para fazer as pessoas aderir voluntariamente a valores humanistas e tolerantes. Quando o nazismo começou a alastrar, esta cidade e a sua região, a Turíngia, catapultaram-se voluntariamente para a linha da frente. Weimar adorava Hitler, e permitiu que Hitler violasse e instrumentalizasse o seu famoso espírito humanista.

Informação: num mundo onde alastram as teorias de conspiração, onde se inventam propositadamente notícias para servir determinadas estratégias e onde as pessoas só lêem aquilo que lhes agrada e só acreditam naquilo que confirma as suas convicções, num mundo em que há gente que vive de espalhar falsidades nas redes sociais e os jornais se fazem cada vez mais vítimas das leis do mercado, como é que alguém pode ainda imaginar que a informação pode ser a solução?
 

São, como disse, perplexidades. Havia muita gente informada e culta entre os apoiantes da primeira hora do partido nazi. Há muita gente informada e culta entre os apoiantes de Trump. E olhe-se para a Polónia, para a Hungria...
Penso que há ideias que se propagam facilmente porque apelam ao pior do que há em nós. Temos o dever de nos defender da sua carga maligna. Não lhes podemos dar palco, e não podemos aceitar que se transformem em algo normal, uma simples questão de opinião.
Não precisamos de reinventar a roda. Não devia ser preciso uma terceira guerra mundial para reaprender as lições que a primeira e a segunda guerra mundiais nos ensinaram de forma tão dolorosa.

5. Já aqui contei esta anedota, mas vale a pena lembrá-la a propósito do risco de perdermos referências básicas:

Diz o neonazi: "Morte a todos os judeus!"

Diz o contramanifestante: "Não!"
Diz o observador: "Estamos então perante posições extremadas e antagónicas, agora temos de encontrar um compromisso."

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