Um dos mitos fundadores dos arménios reza que, depois de a arca de Noé
ter pousado no monte Ararat, os filhos deste desceram ao vale e
começaram a plantar videiras na encosta da montanha. Foi assim que
surgiu o primeiro #vinho
do mundo. Infelizmente os georgianos não podem ver um pobre de camisa
lavada, e desataram a espalhar por aí que o primeiro vinho do mundo
foram eles que o fizeram. Um dia destes o Juncker terá de ir lá
conversar com uns e outros a ver se fazem as pazes no que diz respeito a
este assunto. Dir-lhes-á: "meus amigos, que interessa o passado?
Olhemos antes para o futuro: o que interessa é que os vinhos da Arménia e
os da Geórgia não deixem de correr para o meu copo!" Isto é uma
metáfora, claro (ou o que é que vocês pensaram, hã?), e os arménios
hão-de perceber que o que ele está realmente a sugerir é que a Arménia
escape à esfera de influência da Rússia e se aproxime mais da União
Europeia, e por isso lhe responderão: "Está tudo muito bem, amigo, mas
antes arranje de passar para o lado de cá as nossas vinhas que crescem
há muitos mil anos na encosta do Ararat". É que nos cortes e recortes do
fim do império otomano alguém com poder esqueceu-se de fazer o
trabalhinho de casa e deixou o monte Ararat (mais o que sobrou da arca
de Noé, das primeiras vinhas do mundo, e das milenares igrejas arménias) (estas últimas não são uma questão simbólica) do lado da
Turquia.
Na Arménia, quem vai de Yerevan para Nagorno-Karabakh, a
meio do caminho, virando à direita, há uma estradinha sinuosa ao longo
de escarpas rochosas com grutas onde encontraram vasilhas de barro com
vinho velho de vários milénios (e logo a seguir uma cidadezinha que tem
um restaurante onde servem umas batatas com carne iguaizinhas às que se
comiam na casa da minha avó) (estou com muita vontade de voltar a esse
restaurante, mas não sei se é boa ideia regressar a um lugar onde já fui
tão feliz).
Entretanto, não sei que terá acontecido à tradição
milenar do vinho arménio, que só me gabaram muito o seu Ararat: um vinho
de uvas brancas semelhante ao cognac.
Na Geórgia, por seu lado,
ainda há quem produza o vinho segundo as tradições mais arcaicas e
carregadas de simbolismo: os kvevri (enormes ânforas onde se faz a
fermentação, em locais subterrâneos) demoram sete dias a fazer, "tantos
quantos Deus usou para criar o mundo". Muitas das vinhas
espalham-se livremente pelas árvores (como as de enforcado, no Norte de
Portugal), por arbustos ou simplesmente pelo chão dos campos. Para quem
está habituado à matemática regularidade dos vinhedos europeus, aquelas
paisagens de videiras todas desmazeladas são um espectáculo estranho e
que faz desconfiar da qualidade do vinho.
Mas não, os vinhos da
Geórgia têm cada vez mais fama - de tal modo, que um dos filmes que
passaram no Culinary Cinema da Berlinale de 2018 (trata-se de sessões
especiais, ligadas a um jantar preparado pelos melhores cozinheiros de
Berlim) foi o documentário "Our blood is wine". Trata-se de um filme
feito com i-phone, para permitir mais proximidade e naturalidade,
descrevendo a viagem de um sommelier dos EUA ao encontro dos produtores
de vinho na Geórgia.
Mais informações sobre o filme (e um teaser): Berlinale 2018.
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