Ontem assisti ao penúltimo concerto de Simon Rattle na Filarmonia. Melhor dizendo: haverá outros, mas ele será então o maestro convidado, e não o director da orquestra. Na próxima semana ainda há a sexta de Mahler (dizem que está esgotadíssima), e no domingo 24 terá a despedida na Waldbühne, após 16 anos à frente dos Filarmónicos de Berlim.
É uma espécie de fim do mundo. Do mundo como me habituei a ele: foi Simon Rattle quem iniciou o Digital Concert Hall, o programa Tapas (encomendas a compositores contemporâneos para peças marcantes mas de curta duração), o Education Program (que me permitiu cantar duas óperas sob a sua direcção), o Late Night. Foi ele que recriou com Peter Sellars as Paixões de Bach de tal maneira que me pergunto como eram elas antes dessa invenção. Foi ele que pôs uma das melhores orquestras do mundo a trabalhar com crianças dos extractos sociais com menos acesso à cultura. Foi ele que abriu aquela casa a projectos de acolhimento e integração de refugiados. E paro por aqui, sem saber se me brotam lágrimas de alegria e gratidão, ou de saudade antecipada, ou ambas.
Ontem havia dois concertos: um às sete da tarde, dirigido por Simon Ratlle, seguido de um Late Night muito especial, com um programa surpresa preparado pelos músicos para oferecer ao seu maestro.
Tinha bilhetes para os lugares por trás da orquestra para o concerto das sete da tarde ("The age of Anxiety", de Bernstein, seguida de estreia de três "Tapas" encomendadas a Lindberg, Norman e Dean, "Tom and Jerry" - sim, isso mesmo! - de Bradley e "The adventures of Robin Hood", de Korngold). Saí de casa tardíssimo, e cheguei à Filarmonia apenas cinco minutos antes das sete. O problema é que tinha um bilhete para vender, e àquela hora os interessados já estavam servidos, ou tinham desistido. Atirei-me a uma senhora que ainda por ali andava. Ela estava muito indecisa: viera de Frankfurt para o open air com Barenboim e a orquestra da Staatsoper na Bebelplatz, tinha bilhete para ir ao Late Night, e achava que três concertos num dia só era demasiado. Além disso, não estava vestida para ir à Filarmonia - mas ela própria reconheceu que em Berlim isso não era importante. Finalmente, acabou por se decidir a comprar-me o bilhete, e levei-a comigo para os lugares atrás da orquestra, que ela não conhecia. No intervalo toda ela se desfazia em sorrisos, dizendo-me da sua felicidade por estar de frente para o Simon Rattle, e tão perto que quase se sentia parte da orquestra.
Ouvir ali a Sinfonia de Bernstein foi uma experiência única. Houve momentos em que a percussão fez saltar as pessoas na primeira fila. No final, o pianista Krystian Zimerman depôs o seu ramo de flores junto à partitura do Bernstein, em homenagem ao compositor que teria feito 100 anos em Agosto. A seguir disse meia dúzia de piadas e tocou uma peça dedicada a ele, na qual misturava a Sonata ao Luar de Beethoven ("um holandês", disse o brincalhão) e o Happy Birthday. Mas o mais inesperado estava para vir: os três músicos que faziam os efeitos especiais do Tom e Jerry tinham vindo sentar-se entre nós, nos bancos por trás da orquestra, e fartaram-se de fazer palhaçadas ali mesmo. Foram tão divertidos que fiquei com um sorriso preso à cara que durou até ao final do Robin Hood. Se tiver azar, vou ficar para todo o sempre no arquivo do Digital Concert Hall a ouvir o Korngold com cara de muito divertida.
No final, o público aplaudiu ainda mais que de costume. Depois da saída dos músicos, quando as pessoas já avançavam em direcção às portas, Simon Rattle voltou ao palco como faz habitualmente. A sala rebentou de novo em aplausos. À minha volta, algumas pessoas começaram a chorar.
Saí, encontrei-me com a Christina, entrámos para o Late Night. Por uma incrível sorte, tinha conseguido bilhetes na primeira fila do bloco A. Tudo fantástico, excepto as câmaras do Digital Concert Hall viradas a nós, que estávamos a fazer de público. A Christina avisou-me para não coçar o nariz, e treinámos um bocadinho a posição das pernas para parecermos senhoras elegantes. O concerto começou. Sarah Willis, encantadora como sempre, agradeceu a um Simon Rattle - sentado algumas filas atrás de nós - por se ter dado ao trabalho de vir assistir ao concerto que lhe queriam oferecer. Começaram com uma peça escrita por John Adams especialmente para essa noite, "Rattle my Cage". Ao ver o nome projectado na parede, fiz sinal à Christina: "olha, rest my case!", e ela respondeu com um olhar zangado. Alguma vez chegaria o dia em que a minha filha me havia de chamar a atenção como eu lhes fazia quando eram miúdos e não estavam em silêncio absoluto na Filarmonia. E foi logo no dia em que estávamos sentadas na primeira fila do bloco A, com as câmaras viradas a nós. Cá se fazem, cá se pagam...
Depois de Adams, os "Sir Simon all stars" subiram ao palco: os cantores Mark Padmore e Christian Gerhaher, os pianistas Ohad Ben-Ari e Mitsuko Uchida. Magdalena Kozená viria juntar-se a eles pouco depois, levantando-se do lugar ao lado do marido com um berro que se tornou música - uma peça sobre feminismo que termina de modo surpreendente. O dueto de Brahms "die Meere", cantado por Padmore e Gerhaher, foi para mim o momento mais poético da noite: pela melodia, pela perfeita harmonia das duas vozes, e pela delicadeza da interpretação de Mitsuko Uchida, em cujo rosto se reflectia a música que lhe saía dos dedos.
A orquestra entrou em palco, e Sarah Willis explicou que queriam tocar a peça favorita de Simon Rattle, mas não tinham conseguido perceber qual era, pelo que tiveram de arranjar outra solução. Dirigidos por Daniel Harding, um maestro que iniciou a sua carreira pela mão de Rattle (e depois Abbado), tocaram uma rapsódia de temas que fizeram história nesta era de Rattle em Berlim, com arranjo de Aurélien Bello. Eu a ouvir, e a lembrar os momentos em que aquelas músicas se entrelaçaram na minha vida: lembro-me tão bem da surpresa ao receber bilhetes de um casal amigo para irmos ouvir o Sacre du Printemps, ou daquela noite em que o Matthias chegou a casa tarde, depois do seu trabalho na Filarmonia, e me quis mostrar o solo das trompas no final da quinta de Sibelius que ouvira na transmissão para o foyer, mas a versão do Bernstein não o convenceu - disse: "oh, os nossos tocaram isto muito melhor!" ("os nossos"!). Lembro-me tão bem do ar encantado de Simon Rattle no ensaio geral da Paixão segundo São Mateus ao ouvir o violino solista a tocar "Erbarme Dich, mein Gott".
E agora tenho ainda mais para lembrar: o rosto doce de Mitsuko Uchida, sentada no palco, e o seu corpo a ondular suavemente como uma alga no fundo do mar ao som daquele mesmo solo de violino.
Por essa altura do concerto já tinha a certeza de que não quereria estar em nenhum outro sítio do mundo naquele momento, senão naquela sala, naquele lugar. E a Barbara Hannigan ainda não tinha entrado em cena para dirigir e cantar simultaneamente "Crazy Girl" de Gerschwin. Vertiginosa, tudo. Desde a voz, de nuances ricas e muito segura, até à coreografia enérgica da direcção. Dança moderna, da melhor. E depois, os seus dedos esguios largados no ar, aquela roupa, o pormenor da esfera junto ao tacão das botas. Só visto. Estava a acontecer a meia dúzia de metros de mim, e eu ia ficando sem olhos, de tanto os esbugalhar.
A "Crazy Girl" terminou com um olhar de matador na direcção de Simon Rattle, o público quase saltava das cadeiras por aplaudir com tanto entusiasmo, e os músicos concentraram-se em semicírculo no centro do palco, para o último ponto do programa. A Sarah Willis comentou que há duas coisas que músicos profissionais nunca devem fazer em público: cantar e dançar. "Fiquem descansados, não vamos dançar", disse ela. Abriram as partituras, e cantaram a vozes uma canção criada especialmente para agradecer a Simon Rattle estes 16 anos de entrega, e também „We learned from you/our English knowledge too“. Alguns deles não conseguiam esconder a emoção.
No final houve festa para as pessoas da casa, e por ser o meu dia de sorte, de super-sorte, convidaram-me como acompanhante. De modo que andei por ali no meio de tantos músicos que me fascinam, assisti ao entusiasmo de uma senhora do sector administrativo a contar que tivera finalmente a coragem de ir agradecer ao Simon Rattle tê-la feito gostar de música clássica, e este lhe ter dado um abraço apertado, assisti aos discursos (e à Angela Merkel a aplaudir quando se falou do trabalho da orquestra com os refugiados), à entrega do presente muito especial que a orquestra encontrou para aquela despedida, e a um Simon Rattle comovido, feliz e sem palavras. Depois um grupo da América Latina começou a tocar salsa e outras latinadas, e quando dei por ela eram três da manhã.
Foi uma noite tão extraordinária que até me esqueci que era a despedida do Simon Rattle de Berlim, e que isto é uma espécie de fim do meu mundo. Vim para casa a levitar.
3 comentários:
Que magnífica crónica de uma magnífica noite! Eu também estive lá e partilho da alegria, do entusiasmo, do... do... do encantamento que o concerto e a homenagem a Simon Rattle nos proporcionaram. E depois de ler este belo texto, percebi melhor muitas coisas de que no momento já tinha gostado mas de que agora, informado, ainda gostei mais. Bem haja, Helena! (E obrigado de novo, que foi através de si que obtive a graça de um bilhete...)
Uau, que texto!!
Joaquim, foi um prazer.
jj. amarante, mensagem entendida: da próxima vez abrevio. ;)
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