19 maio 2018

hoje acordei salomónica (2)

A ideia despachada e simples que tive há dias (contei aqui) de deixar que uma das partes divida o antigo território palestiniano em dois lotes, e a outra parte escolha com qual dos lotes quer ficar parece uma solução muito justa para resolver o problema de Israel e dos palestinianos mas - obviamente - não é possível. Como é que os israelitas conseguiriam abrir mão do tanto que lá construíram, como poderiam ser obrigados a escolher entre Telavive e Haifa, por exemplo? Impensável. Setenta anos depois, tudo mudou. Não se pode obrigar os israelitas a deixar as suas casas, as suas aldeias, as suas cidades, as suas empresas, as suas escolas, a sua geografia. Impossível. É exigir demasiado. 

Mas foi isso mesmo que fizeram aos palestinianos em 1947. O mapa da ONU deu mais de metade da Palestina aos judeus, o que acabou por forçar os palestinianos a deixar as suas casas, as suas aldeias, as suas cidades, os seus olivais, os seus limoais, a sua geografia.

O que seria impensável impor hoje aos israelitas, foi há 70 anos imposto aos palestinianos. E como eles não quiseram aceitar, deram-lhes o nome de terroristas. A somar a todas as outras abjecções de que os palestinianos foram vítimas: o inacreditável cinismo da campanha de relações públicas conduzida por Israel e os seus aliados.

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Há centenas de milhares de famílias que podem contar histórias como esta que Elias Chacour, um palestiniano cristão e árabe, conta no seu livro Blood Brothers. Muito resumidamente: em 1947, os anciãos da sua aldeia de maioria cristã, Biram, recomendaram a todos que abrissem as portas para acolher os judeus sobreviventes do Holocausto. Esta generosidade foi aproveitada pelos hóspedes para instalar nas casas deles os soldados que haviam de os expulsar da sua própria aldeia. Um dia, o comandante do grupo, manhoso, avisou a população da aldeia de que corria sérios riscos. Os seus soldados iam protegê-los, mas era conveniente que saíssem da aldeia por alguns dias, até passar o perigo. Sem nada para além da roupa que traziam no corpo, a família de Elias Chacour abrigou-se num olival, e esperou. Alguns dias mais tarde, estranhando a falta de sinais do comandante israelita, um grupo desceu à aldeia - e viu as casas saqueadas, os objectos domésticos espalhados pelas ruas, esmagados. Os soldados apontaram-lhes as armas, e proibiram-nos de voltar àquele lugar. A família de Elias Chacour conseguiu encontrar abrigo numa aldeia vizinha, também de cristãos. Alguns dias depois, soldados israelitas entraram nesse refúgio e mandaram juntar todos os homens na praça central, acusando-os de serem rebeldes, terroristas palestinianos, e exigindo que lhes dessem as suas armas. Como ninguém tinha armas para entregar, foram obrigados a ficar de pé à torreira do sol a tarde inteira, sem água, sem nada. Ao anoitecer deixaram finalmente que os homens regressassem a casa. O pai e os irmãos do pequeno Elias estavam exaustos. Ninguém ousou acender luzes na casa, ou cozinhar o jantar. Permaneceram no escuro, aterrorizados. O pai ficou alguns momentos com cada um deles, em silêncio. Elias pressentiu que estava a rezar por eles. Um pouco mais tarde, um barulho ensurdecedor espalhou-se pelas ruas desertas. Os soldados estavam de volta, e usavam megafones para ordenar que todos os homens saíssem das suas casas. A mãe despediu-se do marido e dos três filhos mais velhos, que foram metidos em camiões. Na aldeia ficaram as mulheres com os bebés e os filhos mais pequenos. Quando os camiões arrancaram, o megafone anunciou: "Estamos a levar os vossos terroristas. É isto que acontece a todos os terroristas. Nunca mais os voltarão a ver."
Os camiões levaram-nos até à Síria, e largaram-nos nesse país. Durante três meses, os homens caminharam de regresso a casa. Mal recebidos pelos outros árabes que encontraram no caminho, passaram fome e sede. Quando chegaram a casa vinham esqueléticos e andrajosos. Mas estavam vivos, e de novo com a família.
Uns anos depois, em Dezembro de 1951, a antiga população de Biram conseguiu que um tribunal reconhecesse o direito de  voltarem às suas casas. Os anciãos voltaram à aldeia para mostrar a ordem do tribunal ao comandante dos soldados que a ocupavam. O comandante pediu-lhes alguns dias, para preparar a retirada. Disse-lhes que voltassem no dia 25. O melhor presente de Natal!, pensaram eles. Na madrugada desse dia puseram-se a caminho. Regressavam a casa após vários anos de sofrimento e exílio. Atravessaram olivais e montes cantando hinos festivos de Natal, tomados de enorme alegria. Quando avistaram a aldeia, pararam em silêncio. Estava rodeada por soldados e veículos militares. Um dos soldados alertou os outros para a chegada do grupo, e no momento seguinte toda a maquinaria de guerra foi posta em acção para destruir a aldeia. Tinham marcado o dia de Natal para fazer vir os cristãos ver com os próprios olhos como a sua aldeia era reduzida a pó.
Biram já não existe. Nem o nome se pode dizer.
Anos mais tarde, Elias foi para Paris estudar teologia. No seminário todos eram muito simpáticos com ele, mas evitavam falar do que se passava na Palestina. Até à noite em que Elias contou o que se passara na sua aldeia, e um dos estudantes lhe respondeu que era preciso dizer as coisas como elas são, e que os israelitas se tinham visto obrigados a proteger-se dos terroristas palestinianos. Elias tentou argumentar: dez anos antes, não havia ainda fedayeen. Os palestinianos da sua aldeia não eram terroristas, eram vítimas do terror. Os judeus eram bem-vindos na Palestina, mas não podiam trazer os soldados que expulsavam os palestinianos das suas próprias casas e terras. E rematou: "vocês conhecem-me! não sou terrorista! quero trazer a paz ao meu povo, quero a reconciliação entre palestinianos e judeus!"
Um dos franceses estudantes de teologia respondeu: "Isso é porque vocês são palestinianos bons."
Foi nesse momento que Elias Chacour se deu conta da imensidão da tragédia: dez anos depois de terem sido despojados da sua terra, o mundo olhava para os palestinianos como sendo gente ignorante, hostil e violenta. Proscritos.


2 comentários:

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...

Brava, Helena.

Tu deves sentir-te como aqueles alemães patriotas que, enquanto ainda era tempo, tentavam timidamente prevenir os "Bons Alemães" contra a loucura de Hitler e que, tragicamente, só foram escutados depois da hecatombe.

Eu nem consigo sequer fazer uma pequeníssima ideia dos horrores que os Palestinianos terão sofrido nos últimos 70 desgraçados anos.

Mas consigo imaginar o que sentiria se um "belo" dia a ONU, a mando dos poderosos da Terra, decretasse que o Alentejo era afinal a "verdadeira pátria" dos sírios, dos arménios, dos tutsis, dos ciganos, dos rohingya, ou de qualquer outra etnia perseguida ou injustiçada, e decidisse despejá-la inteirinha ou quase pelo Montado, à força bruta de dólares, balas e bombas, expulsando TODOS os alentejanos para campos de Refugiados nas cercanias de Cáceres, Mérida e Badajoz, incluindo a minha Mãe, todos os meus Amigos e as minhas Tias velhotas. Isso consigo eu imaginar - e só isso já quase me tira o sono.

Helena Araújo disse...

Sem dúvida.
E o mais cínico: por os palestinianos não quererem aceitar esse acto prepotente, puseram-lhes o selo de "terrorista".