Ao ler o que dizem sobre a eutanásia, várias vezes me deparo com a minha fronteira de alarme contra totalitarismos, que é esta: todas as ideias são boas desde que a sua defesa não implique impor sofrimento a inocentes. Muitos dos argumentos contra a despenalização ignoram o sofrimento concreto das pessoas concretas, a sua vontade e a sua liberdade. Nesses casos pergunto-me se, em nome da defesa de um princípio, é legítimo obrigar outras pessoas a serem vítimas de um sofrimento atroz e sem perspectivas de melhoria.
Segundo a síntese que o Público fez dos diplomas apresentados ao Parlamento,
o que se está a discutir neste momento em Portugal aplica-se apenas a
adultos conscientes do alcance do pedido, em situação de sofrimento
extremo, com lesão definitiva ou doença incurável e fatal. O pedido dessa pessoa tem de ser
estudado por dois ou três médicos e exige o aval da
Comissão de Verificação e Avaliação do
Procedimento Clínico de Antecipação da Morte. O doente tem ainda de dar o
seu consentimento no momento marcado para a sua eutanásia.
Analisando os argumentos contrários a esta proposta, começo pelas fake news: ai, ui, nem pensar em aceitar esta lei, porque na Holanda já estão a dar a tal injecção atrás da orelha aos velhinhos incautos e aos adolescentes incomodados com a acne.
É fake news, não vale a pena perder mais tempo com isto.
Ouvindo as pessoas que estão no debate de forma séria, encontro dois campos opostos: os que defendem a liberdade individual de antecipar o fim que já está à vista, pondo cobro a um sofrimento indigno, violento e sem sentido, e os que dizem que o mandamento "não matarás" é inatacável e que a única solução é garantir cuidados paliativos dignos para todos. Dentro deste segundo grupo apresentam-se mais alguns argumentos aos quais sou sensível:
- Há o terrível risco de que aqueles que vivem em abandono e solidão, que sofrem de depressão ou que são vítimas de maus tratos peçam a eutanásia, e que esta lhes seja concedida por comodismo. Pergunto: a sério?
- No outro extremo, o das relações afectivas fortes e saudáveis, há o terrível risco de termos de aceitar a eutanásia de pessoas que não querem ser um peso para aqueles que amam.
- Numa sociedade em processo de envelhecimento, e com despesas crescentes nos cuidados da terceira idade, poderá criar-se a ideia de que estes custos estão a dominar o orçamento do Estado e a inviabilizar o futuro do país, criando subliminarmente a ideia de que os idosos estão a mais. Subliminarmente, ou nem por isso: afinal de contas, já houve um deputado do PSD a afirmar que "a nossa pátria foi contaminada com a já conhecida peste grisalha". Perante tal ambiente, é provável que muitos idosos escolham morrer por não se sentirem aceites nesta sociedade. Um pequeno aparte: gostava de saber quantos dos deputados que na altura não tomaram uma posição pública clara de repúdio desta frase vão hoje votar contra a despenalização, por estarem muito preocupados com a defesa da dignidade da vida humana...
Estes últimos argumentos (pedir a eutanásia por estar a viver em condições de abandono ou maus-tratos, ou para não pesar aos familiares e à sociedade) são importantes para um debate, mas não para este debate, porque estes motivos não estão considerados no projecto de lei actualmente em discussão.
Quanto à questão "morte antecipada" versus "cuidados paliativos para todos":
- Quem ou o quê nos dá o direito de dizer "aguente, aguente" a uma pessoa que se sente
escravizada por um terrível sofrimento físico sem esperança de cura, e pede ajuda para pôr cobro a essa
situação?
- Há algum cinismo (ainda que involuntário, disso não tenho dúvidas) na sugestão de recusar a eutanásia porque "o que é imperioso é melhorar o sistema de saúde e alargar a rede de cuidados paliativos a todo o país e a todos". Parece aquelas pessoas que não dão de comer a um faminto porque entendem que a Segurança Social é que tem obrigação de tratar desses casos.
Trabalhemos incansavelmente para que todos os que precisarem tenham acesso a cuidados paliativos, e - em paralelo - dêmos já hoje às pessoas com doenças terminais e em situação de extremo sofrimento a possibilidade de decidir livremente.
- Tal como antes na questão do aborto, também aqui há uma situação de desigualdade: quem tem dinheiro, pode ir morrer à Suíça. Quem não tem, pois então que aguente, aguente. É a vida...
- Um último comentário para referir os profissionais da saúde que aceitariam prestar este serviço: não sei o que andará na cabeça das pessoas que os descrevem como psicopatas sedentos de morte. Pessoalmente, não tenho palavras para exprimir a minha admiração por quem é capaz de uma generosidade e um altruísmo tais que consegue superar os seus próprios sentimentos e instintos de conservação para dar a alguém a ajuda que essa pessoa implorou.
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À margem desta discussão, e retomando os argumentos acima mencionados que não têm lugar nela, excepto numa linha retórica de "plano inclinado", foquemo-nos no caso das pessoas que, por algum motivo, vivem num sofrimento tal que pedem a morte. O facto de tal pedido exigir que vários profissionais de áreas diferentes analisem com toda a seriedade cada caso concreto
poderia alertar os familiares e as instituições para a situação de
sofrimento em que a pessoa se encontra. Mas enquanto se recusar a possibilidade de uma pessoa pedir que a matem por compaixão, o mais provável é que as suas queixas continuem sem ser ouvidas, e seja obrigada a aguentar situações terríveis de abandono, de falta de perspectivas e/ou de maus tratos que vão desde a negligência à violência física e psíquica. Ou seja: é condenada a viver em sofrimento sem ser ouvida, por uma sociedade que põe o valor da vida muito acima do da qualidade da vida. Analisando a questão por esta perspectiva, a possibilidade da eutanásia representaria uma ameaça ao comodismo e à boa consciência: já não seria tão fácil ignorar o sofrimento em que algumas pessoas vivem.
Por outras palavras: o mandamento "não respeitarás a vontade de quem te implora ajuda para morrer" só pode vir depois de termos feito todos os possíveis e os impossíveis para que essa pessoa sinta que a sua vida ainda tem sentido apesar das suas circunstâncias. Sem isso, a proclamação do valor absoluto da vida corre o risco de não ser mais do que palavras ocas, egoístas e comodistas. Pior ainda: escravizadoras e totalitárias.
3 comentários:
Absolutamente !
Porém, parece-me ter deixado um problema por abordar: a partir do momento em que a eutanásia seja um direito, passa a ser também um dever, pois "alguém" terá de prestar esse "serviço". Institucionalizá-lo na base do voluntariado, tem sido o expediente encontrado. Mas e se não houver voluntários ?
Cump.
MRocha
É terrível pôr a nossa vontade à frente da vontade dos outros, quando essa vontade em nada prejudica o outro. Adorei o "pôr o valor da vida muito acima do da qualidade de vida".
MRocha,
quando não houver voluntários, logo se vê. Não tenho notícia de isso ser algum problema nos países onde a eutanásia é aceite.
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