10 abril 2018

🤬




Aconteceu no passado fim-de-semana na Alemanha:

- No sábado, em Münster, um esquizofrénico filho e neto de alemães meteu-se numa carrinha, largou-se para cima das pessoas sentadas numa esplanada, matou algumas, feriu muitas mais, e no fim suicidou-se com uma arma de fogo.
- Em Berlim, a polícia fez rusgas em várias casas e levou presos seis homens suspeitos de estarem a preparar um atentado durante a meia-maratona que se realizou no domingo nesta cidade. As armas seriam facas, e um dos membros do grupo é próximo do autor do atentado no mercado de Natal em 2016. Os homens estavam já sob observação, e a polícia decidiu agir agora não por ter motivos fortes para temer este ataque concreto, mas por precaução, uma vez que não se conheciam ainda os motivos do ataque de Münster. Neste momento estão a analisar os objectos recolhidos nas casas dos suspeitos.
- A Primavera chegou finalmente, e as estradas encheram-se de motociclistas. Se ouvi bem a notícia na rádio, só neste fim-de-semana morreram 9 deles devido a acidentes na estrada.

Ponto 1: Os acidentes na estrada matam muito mais que o terror islamista e todos os tresloucados que por aí andam. Se o tresloucado de Münster fosse um esquizofrénico filho de pais muçulmanos, a onda de choque e repúdio ia ser enorme. Como era apenas um tresloucado alemão, a tragédia não teve o mesmo impacto nas redes sociais. Quanto aos motociclistas que morreram no fim-de-semana passado: ouvi na rádio, mas não encontrei nenhuma notícia para verificar o número que ouvi. Aparentemente, o número de mortos na estrada nunca é notícia.
Os acidentes na estrada matam muito mais que o terror islamista, mas nós continuamos alegremente a conduzir em excesso de velocidade, a fazer manobras perigosas, a andar de bicicleta sem capacete, e todos os etc. da nossa vidinha. Parece que não temos medo da morte - só temos medo de morrer por culpa de um islamista.

Ponto 2: Nas redes sociais portuguesas encontrei posts sobre a tragédia de Münster, insinuando conspirações várias ligadas ao tema "a Europa anda a fechar propositadamente os olhos ao terrorismo islamista".
Ora bem, e falando da Alemanha: tem havido tragédias com vítimas mortais devido ao terrorismo islamista, devido ao terrorismo de extrema-direita, e devido a pessoas com problemas psíquicos graves (como o piloto da German Wings, o jovem refugiado afegão que atacou pessoas com um machado, ou o filho de iranianos que em Munique resolveu atrair turcos a um McDonald's para os matar); e há, obviamente, inúmeras vítimas mortais de acidentes por negligência grave, mas que a sociedade aceita sem fazer ondas, como condutores embriagados, ou ao telemóvel, ou a conduzir para lá de todos os limites do respeito pelos outros.
Convém que as pessoas que se focam demasiado na questão do terror islamista, e vêem automaticamente terror islamista em tudo o que acontece (muitas vezes havendo mesmo provas em contrário), saibam que essa atitude tem consequências. Muito concretamente, estão a dar para o peditório que usa agora os muçulmanos da mesma forma que os judeus foram usados na Europa há cerca de cem anos: um magnífico bode expiatório para os problemas do tempo, capaz de ser identificado como corpo estranho e ameaça para uma sociedade (ilusoriamente) uniforme, o que dá muito jeito para agregar acólitos e polarizar.

Na Alemanha, este é o terreno no qual germina e cresce a AfD.
Um exemplo prático, a partir dos tuítes de Beatrix von Storch, que é deputada deste partido no Parlamento Federal:

Logo a seguir às primeiras notícias da tragédia de Münster:



Tradução: "NÓS CONSEGUIMOS! 🤬   "
(citando a célebre frase de Angela Merkel a propósito do desafio de acolher e integrar os refugiados)

Um pouco mais tarde, quando se soube que o atacante era alemão (digamos, em linguagem que a AfD entende: "ariano"):



Tradução: "Não tem de ser um atentado islâmico. Claro que não. E se se vier a descobrir que se trata de um alemão doente, é isto que constato: já temos assassinos e tresloucados alemães em número suficiente. Não precisamos de aumentar esse número."



Tradução: "Fim de alerta. Tudo vai ficar bem. Não temos problema nenhum com o terrorismo islâmico e 700 pessoas que constituem uma ameaça. É tudo exagero. Verbalizar suspeitas é puro discurso de ódio. Porque desta vez era (provavelmente) um alemão doente. #MeuDeusEnviaCérebrosDoCéu"



Tradução: "Um imitador do terrorismo islâmico ataca. E os apologistas da trivialização e do "Islão é diversidade" rejubilam. A extensão deste júbilo é a prova de que todos conhecem perfeitamente o perigo que se recusam a assumir: o Islão vai atacar de novo. A questão não é "se", mas "quando". #Realidade"

Após a notícia da prisão de seis suspeitos de preparar um atentado em Berlim:



Tradução: "NÓS CONSEGUIMOS! 🤬 (E de repente faz-se silêncio no exército de apologistas e hiper-ventiladores de subterfúgios. Mas com certeza que vocábulos como "instrumentalização" ou "ódio" podem ajudar. Go for it!) PRISÃO IMEDIATA PARA TODOS OS SUSPEITOS DE SEREM UMA AMEAÇA PARA A ALEMANHA! #BerlinHalf"

Está cá tudo: o ódio à Merkel por ter recebido refugiados / mais um atentado islâmico! / ah, afinal era só um alemão a imitar os terroristas islâmicos / não foi, mas podia ter sido, e o próximo será certamente / coitadinha de mim, não me deixam dizer o que penso / vêem como eu tinha razão? eles andam aí! / a culpa é da Merkel! (queridos eleitores do CDU, como vêem deviam votar antes AfD)

Em suma: o logótipo oficial da AfD é este:



mas o verdadeiro rosto deles é este:





Ponto 3: Sobre o verdadeiro rosto da AfD não há grandes dúvidas. E sobre o nosso? Como é que reagimos às tragédias que se sucedem? Temos sabido sempre distinguir entre um muçulmano e um terrorista islamista? Ou caímos inadvertidamente nas armadilhas do discurso populista da extrema-direita?


2 comentários:

jj.amarante disse...

O seu argumento do ponto 1, comparar as mortes do trânsito com as vítimas do terrorismo é como se diz, uma faca de dois gumes, lembro-me de os salazaristas usarem esse argumento para minimizarem as perdas de vidas humanas na guerra colonial portuguesa. Na realidade uma percentagem apreciável das mortes de militares ocorriam em acidentes de trânsito, devido também às condições deploráveis em que se encontravam jipes e outros veículos e à juventude dos condutores. A guerra do Vietnam também causava menos mortes anuais do que os acidentes de trânsito nos E.U.A.

Eu talvez fizesse outra abordagem, as pessoas aceitam as mortes no trânsito porque por outro lado a liberdade de movimentos que o trânsito permite é um valor que compensa algumas perdas de vida. Talvez mesmo o saldo final seja positivo uma vez que a diminuição do tempo de intervenção do pessoal médico e para-médico em situações de doença/acidente críticas não relacionadas com o trânsito poderá salvar muitas vidas. Por outro lado, têm dificuldade em aceitar as mortes do terrorismo pois não vêem qual o lado positivo dessa realidade, por poucas que sejam as mortes em relação ao trânsito, à semelhança do que pensava a maioria da população portuguesa em relação à guerra colonial. Eu diria que essas mortes talvez sejam o preço que temos que pagar pelos ganhos da interacção cultural e comercial com sociedades muito diferentes das nossas, é preferível ter alguma interacção do que não ter nenhuma, situação onde além de perder os ganhos teríamos ainda menos controle sobre os então mais prováveis choques futuros.

Reparei que mudou "terrorista islamista ou muçulmano" para "muçulmano ou terrorista islamista", assim ficou bastante melhor pois na versão inicial parecia que as categorias "islamista" e "muçulmano" seriam equivalentes.

Sinto-me desconfortável com o "islamista" e o "islâmico", fui mais uma vez à internet (http://traducinando.com/diferencia-entre-arabe-musulman-islamico-e-islamista/) onde vi que "islamista" é um movimento político fanático com interpretações extremistas do islão enquanto "islâmico" designa afinidades simples com o islão como arquitectura islâmica, costumes, etc.
Se no ocidente usássemos os mesmos sufixos para o cristianismo seria mais fácil. E por exemplo no budismo existe apenas a palavra "budista" que tanto se aplica aos seguidores de buda como à arte e os costumes ou práticas budistas, não existindo a palavra "Búdico".

Faz-me lembrar da dificuldade que tenho com a eficiência e a eficácia que eram sinónimos mas agora, nos cursos de gestão, a eficiência é "bem feito sem olhar a custos" e eficácia é "bem feito e barato".

Helena Araújo disse...

Essa comparação com a guerra está bem vista.
Mas há uma diferença: uma guerra como a colonial é uma escolha; o terrorismo que nos aflige não é. Não temos como impedir estes ataques, porque a maior parte dos terroristas já está entre nós - alguns deles até são "dos nossos", e inclusivamente oriundos de famílias cristãs.
Entendo que as pessoas protestem perante o número de mortos numa guerra colonial, porque esse protesto pretende levar ao fim dessa guerra que é entendida como injusta e sem sentido.
Pergunto o que pretendem alcançar os que protestam devido aos mortos por violência terrorista. O que propõem para acabar com isso?

Sobre islamista e islâmico: guiei-me pela explicação do guia do Público. Para mim, faz sentido usar "islamista" com a terminação de "fascista". Mas claro que as coisas complicam quando metemos os budistas ao barulho. O melhor é esperar até haver células de terror budistas, e nessa altura decidimos como é que distinguimos os budistas bons dos budistas maus. :)