31 janeiro 2018

"Fausto"

A palavra mágica do dia na Enciclopédia Ilustrada foi "Fausto".
Aproveitei para me queixar de uma ópera que me aconteceu há tempos, e desde então me andava aqui entalada:



Bem sei que já hoje se falou aqui muito da "Danação de #Fausto", de Berlioz, mas ponham o ombrinho a jeito, porque me venho aqui queixar da encenação que vi desta ópera em Berlim. O maestro era o Simon Rattle, e a Margarida era a Magdalena Kožená. Até aí, tudo maravilhoso. Mas o encenador Terry Gilliam resolveu justapor ao libretto a História da Alemanha, desde o período romântico (a ópera abre com uma citação cenográfica de Kaspar David Friedrich) até ao fim do III Reich.
Ora bem: não tentem fazer isto em casa - pode correr muito mal. Primeiro: não é boa ideia um inglês vir à Alemanha mostrar cenas do III Reich. Os alemães têm com esta época negra da sua História uma relação extremamente exigente, que não perdoa clichés e abordagens superficiais. Segundo: pegar nos textos daquela história do Fausto, do Diabo e da Margarida, e fazê-la decorrer ao longo da História alemã, tem tudo para correr mal. Por exemplo: a República de Weimar entrou na parte do coro da taberna (estão a imaginar o movimento revolucionário, os sindicatos e os partidos a cantar uma canção de bêbedos (*)?
Eu também não.

Mais grave ainda foi a última ária de Margarida. O encenador põe-na com uma estrela amarela no peito, sentada junto à sua mala, à espera do comboio de gado que a levará para Auschwitz, a cantar este texto (**):
"D’amour l’ardente flamme,
Consume mes beaux jours.
Ah! la paix de mon âme
A donc fui pour toujours!
Son départ, son absence
Sont pour moi le cercueil,
Et, loin de sa présence
Tout me paraît en deuil."



Não se pode fazer isto na Alemanha. Não se pode fazer isto a público alemão. O sofrimento dos judeus no Holocausto não pode ser tratado com esta falta de seriedade num teatro de Berlim.

E que fiz eu? Dividida entre apreciar os magníficos cenários e coreografias (que o eram) e irritar-me com aquele disparate, optei por olhar quase sempre para o Rattle no seu estrado, e para me fixar no trabalho dos cantores.
Pelo menos já ninguém me tira a recordação da voz da Kožená a cantar aquelas poucas árias que são as da Margarida nesta ópera!

(Sim, poucas árias, infelizmente. Mas, lá está: o libretto foi escrito numa época em que ainda não havia uma quota obrigatória de tempo de antena das mulheres em palco... )

--

(*)
"Oh! qu’il fait bon, quand le ciel tonne,
Rester près d’un bol enflammé,
Et se remplir comme une tonne,
Dans un cabaret enfumé!
J’aime le vin et cette eau blonde
Qui fait oublier le chagrin.
Quand ma mère me mit au monde
J’eus un ivrogne pour parrain."

(**)
"D’amour l’ardente flamme,
Consume mes beaux jours.
Ah! la paix de mon âme
A donc fui pour toujours!
Son départ, son absence
Sont pour moi le cercueil,
Et, loin de sa présence
Tout me paraît en deuil.
Alors ma pauvre tête
Se dérange bientôt,
Mon faible cœur s’arrête,
Puis se glace aussitôt.
Sa marche que j’admire,
Son port si gracieux,
Sa bouche au doux sourire,
Le charme de ses yeux,
Sa voix enchanteresse,
Dont il sait m’embraser,
De sa main la caresse,
Hélas! et son baiser,
D’une amoureuse flamme,
Consument mes beaux jours!
Ah! le paix de mon âme
A donc fui pour toujours!
Je suis à ma fenêtre,
Ou dehors, tout le jour,
C’est pour le voir paraître,
Ou hâter son retour.
Mon cœur bat et se presse
Dès qu’il le sent venir,
Au gré de ma tendresse
Puis-je le retenir!
Ô caresses de flamme!
Que je voudrais un jour
Voir s’exhaler mon âme
Dans ses baisers d’amour!"


Sem comentários: