15 dezembro 2017

era para ser um post sobre o programa para este fim-de-semana



Ia para contar que, só para me desforrar da famosa insularidade de que sou vítima (desta vez é a Tinta-da-China  a fazer uma feira do livro com bolos e tudo este fim-de-semana em Lisboa, e eu aqui tão à desamão), para me desforrar, dizia, amanhã vou a casa de uma amiga que juntou um grupinho para interpretar na casa dela o Oratório de Natal de Bach, e no domingo vou à festa de advento que os Kaminer estão a organizar na aldeia que é cenário de um dos livros mais recentes do Wladimir, "Deste lado do Éden". É a aldeia onde eles compraram uma quinta junto a um lago, onde se orgulham de serem proprietários da vinha mais setentrional do mundo (é o que vem no livro, eu cá não invento nada), e onde os vizinhos lhe pediram que fizesse uma russendisko e lhe mandaram mensagem a dizer: "tudo a postos, já pusemos 100 cadeiras na sala". Ando há que anos com vontade de conhecer esses vizinhos - melhor dizendo: a parte não romanceada deles -, e vai ser no domingo.

Antes disso tenho o Oratório de Bach no sábado à tarde, e pensei tirar o sábado de manhã para fazer umas comprinhas e aprender a minha parte. O mail que recebi há duas semanas falava em cinco peças, imaginei que seriam apenas os velhos corais de Lutero que qualquer criança conhece, só que com a cara lavada e bem penteados por Bach, enfim, aquelas coisas que se cantam sozinhas. Mas hoje, só para ser previdente, resolvi começar a olhar para a partitura. Depois fui ouvir a primeira peça que tenho de aprender. Essa que está no vídeo. Quer-me parecer que vou passar a noite inteira a estudar um playback jeitoso.


Era para ser um post sobre o que vou fazer este fim-de-semana, mas depois reparei nas imagens iniciais do vídeo, feito na Frauenkirche, em Dresden. Que igreja barroca fantástica! Ninguém diria que tem apenas dez anos. Foi praticamente toda destruída no bombardeamento de Dresden. E as ruínas só se salvaram porque havia um professor universitário que ia pedindo sucessivamente adiamentos na remoção do entulho porque tinha alunos a fazer doutoramentos sobre a estática daquela igreja, dizia ele. Deve ter sido a estática mais bem estudada do mundo, mas a verdade é que quando se deu a reunificação as ruínas ainda lá estavam, e arranjou-se dinheiro para refazer o resto em todo o seu esplendor.

E depois reparei num comentário a esse vídeo:

Johannes Günther: "Ouço uma obra-prima como esta com sentimentos contraditórios. Por um lado, alegra-me o coração e a alma. Por outro lado, amaldiçoo o nosso tempo, porque tenho a sensação de que a formação sobre a História e a Cultura alemãs se limitam ao Holocausto. Quantos dos alemães com menos de 30 anos (como é o meu caso) têm uma ideia da cultura do seu próprio povo?"

Algumas pessoas reagiram:

The Wizard of Potsdam: "Que disparate... A literatura que é dada nas escolas só em dois semestres inclui o Holocausto. Em Brandeburgo e Berlim, por exemplo, os temas do final do secundário são Sturm und Drang,  Naturalismo, Comunicação e Media. A segunda Guerra Mundial não é tema. E mesmo que fosse: claro que este espantoso trabalho de Bach pertence à história cultural alemã. Mas não se pode ficar só com o que "faz bem ao coração e à alma". O Holocausto também é parte da história cultural alemã. O nacional-socialismo não surgiu de repente - peng! - do nada. Tem uma longa história e raízes profundas na cultura alemã (o romantismo nacional, a narrativa do eterno judeu em Wagner, por exemplo). Também temos de nos confrontar com isso."

Christiane Behnke: "A escola nunca pôde dar tudo, nem agora nem há 40 anos. Mas dá pistas que cada um pode seguir. É uma sorte cruzar-se com Bach. Na vida há sempre sentimentos contraditórios. Se gostamos do que estamos a ouvir, o melhor é ignorar o outro lado. (...) Infelizmente, a Alemanha nazi conseguiu ser o primeiro país a vez exterminar pessoas de forma sistemática. Isso vai ficar para sempre, e é bom que fique. Porque não pode voltar a acontecer. Em vez de se lamentar (não vale a pena, não vamos conseguir desfazer o que foi feito), mais vale tentar aprender com isso. (...)"

Johannes Günther: "Nas entrelinhas, vejo claramente que és boa pessoa. Mas a frase "isso vai ficar para sempre, e é bom que fique" leva-me a acreditar que, como tantos outros, aceitaste o que te doutrinaram na escola, e isso entristece-me. Podes ter a certeza que não conhecemos a verdadeira história, e por isso não podemos aprender com ela. "

The Wizard of Potsdam: "Obrigado, Johannes. Eu só queria saborear Bach. Mas agora, mal abro este vídeo, sinto-me enojado por saber que nem sequer vídeos de música como esta estão a salvo de pessoas que se servem de tudo para espalhar o negacionismo do Holocausto. A sua falta de compaixão dá vómitos. Bem pode poupar frases arrogantes como o "vejo que és boa pessoa" que dirigiu à Frau Behnke.

Christiane Behnke: Beeeem, o melhor é não entrar na questão da culpa. (...) Penso que é globalmente importante que um povo não esqueça o que fez, tanto o bem como o mal. Como qualquer pessoa, aliás. Caso contrário, continua a andar nos seus sapatos infantis, e não consegue ir muito longe. Irrita-me ver que nos outros países ninguém fala dos transportes de judeus e dos pogroms contra eles, embora as milícias nacionais tenham trabalhado com muito empenho. A Alemanha teve de reconhecer o que os nazis fizeram. E com base nisso foi possível desenvolver uma Democracia como não se encontra em muitos outros países. Com erros, mas bastante OK. Portanto, em vez de ficares triste, saboreia Bach. E não sejas tão espevitado.
Talvez eu seja boa pessoa, não sei e não me interessa. Mas dei-me ao trabalho de estudar muito sobre História e Cultura, para saber de que estou a falar.  Por isso não me passa pela cabeça ter sentimentos contraditórios quando ouço a música belíssima da minha cultura."

Eric Mustardman: "Também tenho sentimentos contraditórios quando vejo que alguém aproveita uma peça tão bela como o Oratório de Natal de Bach para espalhar negacionismo do Holocausto. Uma parte de mim está na pacífica disposição da quadra natalícia e quer perdoar este discurso de ódio, e outra parte de mim sente a necessidade urgente de fazer queixa às autoridades (...).
Já agora: "os alemães" devem a "um judeu" a obra de Bach não ter caído no esquecimento. Foi o compositor Felix Mendelson Bartholdy (e neto do grande filósofo iluminista Moses Mendelson) que lutou para fazer ouvir peças de Bach e Haendel quando já há muito se deixara de falar deles. Mendelson Bartholdy cirou em Leipzig o primeiro Conservatório da Alemanha e criou standards, quer como compositor quer como maestro, que ainda hoje são válidos."

O outro responde que não está a defender negacionismo nenhum, e se já não se pode dar uma opinião...

Anda um J.S. Bach a suar as estopinhas para compor um Oratório que celebra o Deus que se faz criança entre nós, e é isto...


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