Dei-me conta do escândalo #Weinstein
devido a este artigo na New Yorker, escrito por Ronan Farrow, o filho
de Mia Farrow com contas em aberto em Hollywood e em particular com o pai dele, Woody
Allen.
A gravação que vinha com o artigo reabriu uma ferida antiga em mim. Eu já falei com este tom de voz, já disse "não quero" e "deixa-me ir embora" com este exacto tom de voz. Tinha oito anos.
Nunca contei aos adultos à minha volta o que aconteceu nesse dia em Paris: fui-me despedir das minhas amiguinhas antes de regressar a Portugal, e o pai delas, que estava sozinho em casa, mentiu-me dizendo que elas estavam a brincar às escondidas, e atraiu-me à casa de banho. Só me deixou sair depois de eu ter cedido a dar-lhe o beijo que exigia. Foi apenas um beijo na cara, mas ando já há 45 anos a rogar-lhe pragas. Espero que algumas tenham funcionado, especialmente as que incluem pústulas, podridão e dores lancinantes na parte da cara que fui obrigada a beijar.
Porque é que não contei aos primos da minha mãe, com quem estava a passar férias? Porque é que não contei aos meus pais?
"Porque é que as mulheres não contam o que lhes fazem? Porque é que só agora é que lhes deu para se queixarem?" - é uma acusação frequente ligada ao escândalo Weinstein e à onda de testemunhos que se lhe seguiu.
Em Maio de 2016, o jornalista Ronan Farrow explicou com o exemplo da sua própria irmã o que acontece às mulheres que ameaçam os poderosos, e mostrou como a máquina de Hollywood protege os seus machos (My Father, Woody Allen, and the Danger of QuestionsUnasked). Uns meses depois, Ronan começou um trabalho de investigação sobre o comportamento de predador sexual de Weinstein, um dos poderosos que defendeu Woody Allen quando este foi acusado de abuso sexual pela própria filha. Andou dez meses a entrevistar mulheres e a preparar o artigo que, depois de ter visto a sua publicação recusada noutros órgãos de informação, foi publicado na New Yorker (From Aggressive Overtures to Sexual Assault: Harvey Weinstein’s Accusers Tell Their Stories).
Em 2015, logo depois de ter sido vítima de abuso sexual por parte de Weinstein, Ambra Battilana Gutierrez, a modelo que se ouve na gravação no topo deste post, queixou-se à polícia de Nova Iorque, que lhe sugeriu que se encontrasse de novo com Weinstein e gravasse a conversa. Foi o que ela fez. Entregou a gravação à polícia. Esta, depois de falar com Weinstein, decidiu arquivar o processo. Entretanto, nos boulevards começaram a pipocar notícias que arruinaram o bom nome da modelo.
"Porque é que as mulheres só agora começaram a falar destes assuntos?" - o mínimo que se pode dizer desta pergunta é que é de um cinismo inacreditável. O que espanta é que, apesar de todas as ameaças e de todos os riscos, algumas tenham tido a coragem de denunciar algo que todos sabem e preferem fazer de conta que não vêem.
Porquê agora? Estou convencida que a vaga mundial de repúdio provocada pela gravação "grab them by the pussy" de Donald Trump, quando este concorria à presidência dos EUA, teve um papel muito importante na mudança da atitude em relação a estas histórias.
No entanto, o que me enfurece ainda mais do que o próprio conteúdo da gravação, é o facto de a terem divulgado por necessidade estratégica eleitoral, e não por uma questão de decência ou de revolta pelo modo como ali se fala das mulheres. A gravação existia desde 2005. Tudo nela é abjecto, mas durante uma década inteira ninguém se lembrou de a divulgar. Só a usaram em Outubro de 2016 - e foi porque era preciso evitar a todo o custo que Trump se tornasse presidente. Se Trump não tivesse concorrido às eleições, se não tivesse havido alguém que decidiu chegar ao extremo de divulgar material "sensível" como este para impedir a sua eleição, provavelmente ainda hoje quase nenhuma mulher teria a coragem de enfrentar um mundo que as hostiliza e castiga quando decidem acusar um homem poderoso. E o mundo continuaria a organizar-se para ignorar, desprezar e desconfiar das poucas que ousassem erguer a voz.
A gravação que vinha com o artigo reabriu uma ferida antiga em mim. Eu já falei com este tom de voz, já disse "não quero" e "deixa-me ir embora" com este exacto tom de voz. Tinha oito anos.
Nunca contei aos adultos à minha volta o que aconteceu nesse dia em Paris: fui-me despedir das minhas amiguinhas antes de regressar a Portugal, e o pai delas, que estava sozinho em casa, mentiu-me dizendo que elas estavam a brincar às escondidas, e atraiu-me à casa de banho. Só me deixou sair depois de eu ter cedido a dar-lhe o beijo que exigia. Foi apenas um beijo na cara, mas ando já há 45 anos a rogar-lhe pragas. Espero que algumas tenham funcionado, especialmente as que incluem pústulas, podridão e dores lancinantes na parte da cara que fui obrigada a beijar.
Porque é que não contei aos primos da minha mãe, com quem estava a passar férias? Porque é que não contei aos meus pais?
"Porque é que as mulheres não contam o que lhes fazem? Porque é que só agora é que lhes deu para se queixarem?" - é uma acusação frequente ligada ao escândalo Weinstein e à onda de testemunhos que se lhe seguiu.
Em Maio de 2016, o jornalista Ronan Farrow explicou com o exemplo da sua própria irmã o que acontece às mulheres que ameaçam os poderosos, e mostrou como a máquina de Hollywood protege os seus machos (My Father, Woody Allen, and the Danger of QuestionsUnasked). Uns meses depois, Ronan começou um trabalho de investigação sobre o comportamento de predador sexual de Weinstein, um dos poderosos que defendeu Woody Allen quando este foi acusado de abuso sexual pela própria filha. Andou dez meses a entrevistar mulheres e a preparar o artigo que, depois de ter visto a sua publicação recusada noutros órgãos de informação, foi publicado na New Yorker (From Aggressive Overtures to Sexual Assault: Harvey Weinstein’s Accusers Tell Their Stories).
Em 2015, logo depois de ter sido vítima de abuso sexual por parte de Weinstein, Ambra Battilana Gutierrez, a modelo que se ouve na gravação no topo deste post, queixou-se à polícia de Nova Iorque, que lhe sugeriu que se encontrasse de novo com Weinstein e gravasse a conversa. Foi o que ela fez. Entregou a gravação à polícia. Esta, depois de falar com Weinstein, decidiu arquivar o processo. Entretanto, nos boulevards começaram a pipocar notícias que arruinaram o bom nome da modelo.
"Porque é que as mulheres só agora começaram a falar destes assuntos?" - o mínimo que se pode dizer desta pergunta é que é de um cinismo inacreditável. O que espanta é que, apesar de todas as ameaças e de todos os riscos, algumas tenham tido a coragem de denunciar algo que todos sabem e preferem fazer de conta que não vêem.
Porquê agora? Estou convencida que a vaga mundial de repúdio provocada pela gravação "grab them by the pussy" de Donald Trump, quando este concorria à presidência dos EUA, teve um papel muito importante na mudança da atitude em relação a estas histórias.
No entanto, o que me enfurece ainda mais do que o próprio conteúdo da gravação, é o facto de a terem divulgado por necessidade estratégica eleitoral, e não por uma questão de decência ou de revolta pelo modo como ali se fala das mulheres. A gravação existia desde 2005. Tudo nela é abjecto, mas durante uma década inteira ninguém se lembrou de a divulgar. Só a usaram em Outubro de 2016 - e foi porque era preciso evitar a todo o custo que Trump se tornasse presidente. Se Trump não tivesse concorrido às eleições, se não tivesse havido alguém que decidiu chegar ao extremo de divulgar material "sensível" como este para impedir a sua eleição, provavelmente ainda hoje quase nenhuma mulher teria a coragem de enfrentar um mundo que as hostiliza e castiga quando decidem acusar um homem poderoso. E o mundo continuaria a organizar-se para ignorar, desprezar e desconfiar das poucas que ousassem erguer a voz.
Sem comentários:
Enviar um comentário