23 novembro 2017

"thanksgiving"


[Freedom from Want is a painting by American artist Norman Rockwell. The painting, which is also known as The #Thanksgiving Picture, is an oil on canvas work completed in 1943, and is in the Norman Rockwell Museum in Stockbridge, Massachusetts.]

O thanksgiving, os EUA e eu (por menos que isto, não faço ;) )

Thanksgiving, só há o americano. O da quinta-feira que antecede a Black Friday, o do peru e da pumpkin pie, o da família reunida à mesa e o do patriarca a rezar para todos, o do jogo de futebol americano, o da parada do Macy’s. O resto são festinhas, ou celebrações que vão morrendo com o mundo rural – como a Festa das Colheitas. A Festa das Colheitas, se querem saber, ainda agora se celebra nas igrejas das cidades alemãs. Enchem os altares de cereais e frutos como se fosse uma grande coisa, até parece que não sabem que isso existe nos supermercados o ano inteiro, e até a preços bastante acessíveis.

Mas a Festa das Colheitas e as celebrações de Acção de Graças não são, como disse, o Thanksgiving.

Quando fomos morar nos Estados Unidos achávamos que já sabíamos tudo sobre esta comemoração. Afinal de contas já tínhamos celebrado alguns com amigos da comunidade norte-americana que vivia na nossa cidade alemã (sim, que os soldados americanos não abandonaram a Alemanha mal o muro caiu). Como um amigo meu comentou uma vez, a propósito das férias que passava no Douro, na casa de um padre onde havia uma cozinheira fantástica: “tínhamos de rezar antes de comer, mas valia a pena”. Oh, se valia! O fiambre assado, o presunto recheado, o baked macaroni and cheese, o puré de batata, o cranberry sauce, a pumpkin pie, tudo! Depois do jantar, eu lembrava-me com muita urgência dos meus deveres de mãe, e levava os miúdos para casa porque eram horas de dormir, e assim escapava à seca do futebol americano. Os outros ficavam em frente à televisão, a beber cervejas e a soltar exclamações. Um Thanksgiving bem passado, em suma.

Pois, quando nos mudámos para os EUA pensávamos que sabíamos tudo sobre o Thanksgiving, mas a verdade é que nem da missa a metade. Aprendemos o resto com os nossos filhos, que em Outubro nos desatavam a contar histórias mirabolantes de pilgrims e índios, e na semana do Thanksgiving preparavam com muito entusiasmo os seus apetrechos para a festa na escola. É que, antes de comer os pratos típicos da data, tinham de encenar aquele momento histórico em que os pilgrims chegavam de barco, os índios os recebiam com toda a gentileza, e logo ali faziam uma grande festa com peru assado, corn bread e pumpkin pie.

Eu enternecia-me com o ar sério deles no papel de pilgrim ou de índio, conforme lhes calhasse, e nem me percebia da estratégia da propaganda e da lavagem ao cérebro que ali estava a decorrer. Só me dei conta no dia em que uma adulta nascida e criada nos EUA começou a dizer-me, com um ar muito concentrado e com todo o detalhe, como tinha sido essa festa e o que tinham comido. Quase lhe perguntei se não se estava a esquecer do baked macaroni and cheese...

A maior parte dos norte-americanos acredita piamente naquele episódio de paz e amor entre os povos, tal e qual, com pumpkin pie e tudo.

A verdade é um pouco diferente, e começa com o Martinho Lutero, esse extraviado [o mais tardar aqui, perceberão que sou católica] [e que estou a brincar] que andou a provocar cisões na Santa Madre, e pôs as pessoas a pensar pela sua cabeça em vez de continuar a dizer ámen ao papa, de modo que cem anos depois andava tudo à turra e à massa, e um grupo da igreja congregacional, que era um ramo radical do puritanismo, que já se tinha separado do calvinismo, achou melhor ir de Inglaterra para Amesterdão, e daí para Leiden, e daí para Southampton, para se meter num barco e zarpar para um continente novo de cem anos, e onde provavelmente os deixariam em paz com a fé deles. Saíram em Setembro de 1620, e depois de uma paragem em Plymouth largaram “on a ship they call the Mayflower / a ship that sailed the moon / in the ages' most uncertain hours and sing an American tune”. A viagem durou mais tempo do que tinham pensado e os ventos levaram-nos para Cape Cod, em vez da Virgínia para onde tinham comprado o bilhete. Rapidamente perceberam que a terra arenosa da região onde tinham desembarcado não lhes daria de comer, pelo que rumaram um pouco mais a sul, instalando-se na terra a que depois dariam o nome de Plymouth – como quem diz que a História se faz em círculos. O inverno estava à porta, eles não tinham o que comer e não lhes ocorreu que um mar chamado Cape Cod devia ter o bacalhau suficiente para lhes compor a ceia de Natal, e as ceias dos outros dias todos. De modo que ficaram cheios de escorbuto no Mayflower, sem saber o que fazer à vida, e passaram tanta fome e tanto frio que morreram mais de metade dos 102 que tinham vindo de Inglaterra, e só não morreram todos porque se puseram a roubar os armazéns de víveres abandonados e os túmulos dos índios da região.

Os índios da região, por sua vez, tinham problemas para dar e vender. Três anos antes uma epidemia tinha atingido mortalmente muitos deles, e as tribos estavam traumatizadas e enfraquecidas. O que explica os depósitos de comida abandonados que os pilgrims encontraram: toda a população daquela aldeia tinha morrido.

O inverno passou. Em Março, quando os pilgrims resolveram instalar-se em terra firme, veio ao seu encontro um índio abenaki que os cumprimentou em inglês. Garanto que isto não é um filme Walt Disney, foi mesmo assim. Esse índio voltou uns dias depois com outro, que falava perfeitamente inglês. Era Squanto - e bem lhe podiam chamar Salvador! – que em tempos fora capturado pelo capitão de um navio inglês e vendido como escravo, e depois de fugir para Londres tinha voltado à sua terra numa missão de exploração. Squanto ensinou os pilgrims a cultivar as plantas daquela terra, a pescar nos rios e a evitar as plantas venenosas. Foi ele quem os ajudou trambém a celebrar um acordo de paz com os Wampanoag, que durou 50 anos e foi um dos poucos casos de coexistência pacífica entre europeus e populações nativas. Mas a este tratado de paz, curiosamente, ninguém liga hoje em dia. A única coisa que interessa os norte-americanos parece ser o peru, a pumpkin pie e o jogo de futebol americano. Em Novembro de 1621, quase um ano depois de terem chegado àquela terra, os pilgrims fizeram uma festa das colheitas e convidaram alguns dos índios seus amigos. A festa repetiu-se dois anos mais tarde, para comemorar o fim de um período de grave seca, e foi entrando nos hábitos do novo país. Também, verdade seja dita, não era uma especialidade apenas dos pilgrims e dos índios seus amigos – a festa das colheitas já se fazia noutras regiões desse continente, bem como na Europa – e se formos a ver, até no Egipto antigo. A coisa foi evoluindo até que George Washington proclamou um dia de Thanksgiving para agradecer o sucesso das guerras de secessão e a criação da constituição americana. Em 1827, Sarah Josepha Hale, editora de uma revista e escritora (e escusam de dizer que não conhecem: é a autora de “Mary Had a Little Lamb”), começou uma campanha para que o Thanksgiving passasse a ser um feriado nacional. Andou nisto 36 anos. Finalmente, no apogeu da Guerra Civil, Lincoln considerou que era boa ideia criar um dia para pedir a Deus “to commend to his tender care all those who have become widows, orphans, mourners or sufferers in the lamentable civil strife” e ainda “heal the wounds of the nation.” O Thanksgiving passou a celebrar-se em todo o país na última quinta-feira de Novembro, até 1939, quando Roosevelt decidiu antecipar a data numa semana, para alargar o período de compras de Natal e assim fintar a Grande Depressão. O seu plano, a que chamaram desdenhosamente Franksgiving, encontrou enorme oposição, pelo que em 1941 o presidente se viu obrigado a assinar um decreto determinando que a data do Thanksgiving é a quarta quinta-feira de Novembro.

Actualmente, este feriado é o momento anual mais importante de encontro das famílias, com os consequentes engarrafamentos nas estradas e nos aeroportos, e ganhou alguns detalhes folclóricos como o desfile do Macy’s, em Nova Iorque, e o peru que recebe o perdão presidencial – algo que começou oficialmente com Bush pai 200 exactos anos após a proclamação do Thanksgiving por Washington. Obama concedia o perdão com imensa graça (vejam os filmes no youtube), e Trump, enfim, fá-lo naturalmente à sua maneira trompassada. [Trompassada: pensava que era português, mas afinal parece que é catalão – tem a ver com “tropeçar”. Que chatice, dava-me um trocadilho tão bom para o Trump!]

Em suma: o Thanksgiving tornou-se um elemento importante de reforço da identidade que um país tão novo como os EUA inventou para si. E funciona tão bem, que as pessoas até acreditam naquela palhaçada dos Pilgrims a comer pumpkin pie com os índios.

--
Depois de escrever tudo isto, deu-me a saudade de uma boa pumpkin pie. E dos passeios pelos campos de abóboras no Outono. E do peru bem assado. Um amigo meu faz um peru de Thanksgiving que fica uma delícia: deixa-o a assar em brandíssimo lume (acho que é 60º C) durante cerca de 24 horas. O truque permite assar por igual as carnes brancas e as escuras, fica tudo tenrinho, e nada seco. Hmmmm. Ah, as saudades da tal pumpkin pie! Não tenho como fazer uma dessas aqui, porque as minhas receitas são todas com evaporated milk e pumpkin em conserva. Alguém sabe evaporar leite, e transformar uma abóbora fresca numa lata de abóbora?

--
Este texto é uma síntese do meu saber de experiência feito, e ainda dos seguintes artigos: http://www.history.com/topics/thanksgiving/history-of-thanksgiving
http://www.telegraph.co.uk/news/0/thanksgiving-day-whats-the-history-of-the-holiday-and-why-does-the-us-celebrate-pilgrim-fathers/
https://news.nationalgeographic.com/2015/11/151121-first-thanksgiving-pilgrims-native-americans-wampanoag-saints-and-strangers/

Sem comentários: