11 outubro 2017

lutar contra o ódio no quotidiano (3)

Dou-me conta - com alegria - de que os exemplos de pessoas que sabem desmontar os mecanismos do ódio são como as cerejas, e que uma história chama outra. Do Amos Oz ao Reuven Moskowitz.
Recupero um post que escrevi neste blogue em 2005:

Conheci o Reuven Moskowitz no ano passado, porque a minha vizinha se fartava de o louvar, muito feliz com a perspectiva de receber em sua casa este homem tão cheio de alegria e frescura, que recebeu o Aachener Friedenspreis por uma vida dedicada à construção de uma paz justa entre palestinianos e israelitas. Fomos ouvi-lo, e tivemos depois óptimas conversas bem acompanhadas de anedotas de humor habraico e vinho do Porto. Contou um pouco da sua vida na schtetl romena onde nasceu, evitou contar detalhes sobre o Holocausto, convidou-nos para ir a Israel conhecer alguns projectos e comunidades onde tem sido possível construir a paz (mas o Joachim recusou amavelmente, alegando alergia ao elevado teor de chumbo no ar).

Ontem [16.11.2005] esteve de novo em Weimar, e fui buscá-lo ao comboio. A caminho de casa, a conversa fluiu logo, como se fôssemos velhos amigos. Gracias a la vida, que tantas vezes me dá momentos destes! Contei-lhe sobre os meus primeiros tempos em Weimar e a pergunta automática que me fazia sempre que via uma pessoa de idade: "há 60 anos, de que lado estavas?". Ele riu-se, "ah! tive a mesma reacção quando vim pela primeira vez à Alemanha!", e acrescentou: "não podemos ser assim, porque esse é o tipo de mecanismo que dá mais força ao anti-semitismo."

Fiquei a pensar nesta imensa sabedoria de saber perdoar ou esquecer, para poder recomeçar o jogo com cartas não marcadas. Vê-lo assim - ele, que escapou ao Holocausto -, tão disposto a aceitar a Alemanha e os alemães, faz-me pensar no cântico dos anjos junto ao presépio: "e Paz aos homens de boa vontade".

No colóquio falou sobre os mecanismos que impedem a paz em Israel: a diabolização premeditada do inimigo, as assimetrias na distribuição de forças e nas negociações. Foi muito claro em relação aos alemães: "É um erro gravíssimo atribuir uma culpa colectiva a todo um povo - os judeus viveram dois milénios com a culpa colectiva da morte de Cristo, e agora são os alemães que vivem com a culpa colectiva do Holocausto. Isto está errado! Não se deixem amordaçar por esses que vos impõem um sentimento de culpa colectiva. Vocês têm uma palavra a dizer sobre o que se passa em Israel, e têm obrigação de se pronunciar!"

Criticou Israel com desassombro e conhecimento de causa. Que os conflitos militares foram provocados por Israel para aumentar o seu espaço territorial, que Gaza não passa de uma enorme prisão, que há uma estratégia deliberada por parte de alguns políticos israelitas de desumanizar os palestinianos para melhor permitir a sua exploração sistemática, que os palestinianos têm sido vítimas de pogroms, e que o seu ódio tem crescido devido ao estado de permanente humilhação em que vivem. E que o único caminho para a paz é desistir das tantas mentiras criados por motivos estratégicos e assumir a verdade, aceitar sentar-se à mesa com o opositor como um igual e não como um demónio (ou um "animal de duas patas", como um político israelita chamava aos palestinianos).

Um dos palestinianos presentes pediu a palavra, para falar sobre a sua cidade: 45.000 habitantes com um único check-point onde um soldado israelita de 19 anos dá livre curso ao seu sadismo, onde morrem pessoas porque a ambulância é obrigada a esperar várias horas, onde mulheres dão à luz em plena fila de espera no meio da rua. A cada nova frase o ódio tornava-se mais palpável - e compreensível. Não tenho experiência de debates assim, e senti pena do Reuven, que, ao tentar abrir caminhos para a Paz, se expõe desta maneira. As suas palavras, que ainda há pouco soavam tão libertadoras, perdiam a força e tornavam-se quase ocas, impotentes perante os horrores a que os palestinianos são sistematicamente sujeitos. Ele não se deixou intimidar pelo ódio. Falou do perigo de generalizar ("os judeus" ou "os palestianos" ou "os alemães" são conceitos que servem a lógica do ódio e da violência), e apelou para a necessidade de desarmar a região e criar uma confederação entre Israel, a Jordânia e talvez a Síria, com a possibilidade de livre movimentação para todos: qualquer palestiniano tem o direito de regressar à Palestina ("isso mesmo, apoiado!", dizia o palestiniano), qualquer judeu tem o direito de se estabelecer na Jordânia ("era o que faltava!", dizia o palestiniano).

E concluiu: temos que acreditar num futuro de paz. Olhem para mim: um judeu que escapou ao Holocausto e hoje tem alemães entre os seus melhores amigos. Isto não é um sinal de esperança?!

Para terminar, contou que no fim da guerra dos seis dias, onde foi soldado e se sentia o vencedor mais triste do mundo, estava encarregado de fazer respeitar a hora de recolha obrigatória num bairro. Algumas crianças começaram a espreitá-lo por trás de uma cerca, e ao vê-las ele percebeu o absurdo e o peso terrível das granadas, do capacete e das botas. Deu-lhes chocolates, e elas em troca ofereceram-lhe uma velha gaita-de-beiços, que ele aprendeu a tocar, em memória daquele momento.

Terminou a sessão tocando canções árabes, alemãs, e uma belíssima melodia para o seu salmo preferido:

"Qual o homem que deseja a vida e quer longevidade para ver o bem? Preserva a tua língua do mal e os teus lábios de falarem falsamente. Evita o mal e pratica o bem, procura a paz e segue-a."

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O Reuven Moskovitz morreu a 4 de Agosto de 2017, uma semanas antes de fazer 90 anos. Estava a preparar mais uma viagem à Alemanha, onde tinha agendado várias palestras sobre a Paz.


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