Dou-me conta - com alegria - de que os exemplos de pessoas que sabem desmontar os mecanismos do ódio são como as cerejas, e que uma história chama outra. Do Amos Oz ao Reuven Moskowitz.
Recupero um post que escrevi neste blogue em 2005:
Conheci o Reuven Moskowitz no ano passado, porque a
minha vizinha se fartava de o louvar, muito feliz com a
perspectiva de receber em sua casa este homem tão cheio
de alegria e frescura, que recebeu o Aachener
Friedenspreis por uma vida dedicada à construção de uma
paz justa entre palestinianos e israelitas. Fomos
ouvi-lo, e tivemos depois óptimas conversas bem
acompanhadas de anedotas de humor habraico e vinho do Porto. Contou
um pouco da sua vida na schtetl romena onde nasceu,
evitou contar detalhes sobre o Holocausto, convidou-nos
para ir a Israel conhecer alguns projectos e comunidades
onde tem sido possível construir a paz (mas o Joachim
recusou amavelmente, alegando alergia ao elevado teor de
chumbo no ar).
Ontem [16.11.2005] esteve de novo em Weimar, e fui buscá-lo ao
comboio. A caminho de casa, a conversa fluiu logo, como
se fôssemos velhos amigos.
Gracias a la vida, que tantas vezes me dá
momentos destes!
Contei-lhe sobre os meus primeiros tempos em Weimar e a
pergunta automática que me fazia sempre que via uma
pessoa de idade: "há 60 anos, de que lado estavas?". Ele
riu-se, "ah! tive a mesma reacção quando vim pela
primeira vez à Alemanha!", e acrescentou: "não podemos
ser assim, porque esse é o tipo de mecanismo
que dá mais força ao anti-semitismo."
Fiquei a pensar nesta imensa sabedoria de saber perdoar
ou esquecer, para poder recomeçar o jogo com cartas não
marcadas.
Vê-lo assim - ele, que escapou ao Holocausto -, tão
disposto a aceitar a Alemanha e os alemães, faz-me
pensar no cântico dos anjos junto ao presépio: "e Paz aos homens de
boa vontade".
No colóquio falou sobre os
mecanismos que impedem a paz em Israel: a diabolização
premeditada do inimigo, as assimetrias na distribuição
de forças e nas negociações.
Foi muito claro em relação aos alemães: "É um erro
gravíssimo atribuir uma culpa colectiva a todo um povo -
os judeus viveram dois milénios com a culpa colectiva da
morte de Cristo, e agora são os alemães que vivem com a
culpa colectiva do Holocausto. Isto está errado! Não se
deixem amordaçar por esses que vos impõem um sentimento
de culpa colectiva. Vocês têm uma palavra a dizer sobre
o que se passa em Israel, e têm obrigação de se
pronunciar!"
Criticou Israel com desassombro e conhecimento de causa.
Que os conflitos militares foram provocados por Israel
para aumentar o seu espaço territorial, que Gaza não
passa de uma enorme prisão, que há uma estratégia
deliberada por parte de alguns políticos israelitas de
desumanizar os palestinianos para melhor permitir a sua
exploração sistemática, que os palestinianos têm sido
vítimas de pogroms, e que o seu ódio tem crescido devido
ao estado de permanente humilhação em que vivem. E que o
único caminho para a paz é desistir das tantas mentiras
criados por motivos estratégicos e assumir a verdade,
aceitar sentar-se à mesa com o opositor como um igual e
não como um demónio (ou um "animal de duas patas", como
um político israelita chamava aos palestinianos).
Um dos palestinianos presentes pediu a palavra, para
falar sobre a sua cidade: 45.000 habitantes com um único
check-point onde um soldado israelita de 19 anos dá
livre curso ao seu sadismo, onde morrem pessoas porque a
ambulância é obrigada a esperar várias horas, onde
mulheres dão à luz em plena fila de espera no meio da
rua. A cada nova frase o ódio tornava-se mais palpável -
e compreensível.
Não tenho experiência de debates assim, e senti pena do
Reuven, que, ao tentar abrir caminhos para a Paz, se
expõe desta maneira. As suas palavras, que ainda há
pouco soavam tão libertadoras, perdiam a força e
tornavam-se quase ocas, impotentes perante os horrores a
que os palestinianos são sistematicamente sujeitos.
Ele não se deixou intimidar pelo ódio. Falou do perigo
de generalizar ("os judeus" ou "os palestianos" ou "os
alemães" são conceitos que servem a lógica do ódio e da
violência), e apelou para a necessidade de desarmar a
região e criar uma confederação entre Israel, a Jordânia
e talvez a Síria, com a possibilidade de livre
movimentação para todos: qualquer palestiniano tem o
direito de regressar à Palestina ("isso mesmo,
apoiado!", dizia o palestiniano), qualquer judeu tem o
direito de se estabelecer na Jordânia ("era o que
faltava!", dizia o palestiniano).
E concluiu: temos que acreditar num futuro de paz. Olhem
para mim: um judeu que escapou ao Holocausto e hoje tem
alemães entre os seus melhores amigos. Isto não é um
sinal de esperança?!
Para terminar, contou que no fim da guerra dos seis
dias, onde foi soldado e se sentia o vencedor mais
triste do mundo, estava encarregado de fazer respeitar a
hora de recolha obrigatória num bairro. Algumas crianças
começaram a espreitá-lo por trás de uma cerca, e ao vê-las ele percebeu o absurdo e o peso terrível das granadas, do capacete e das botas. Deu-lhes chocolates, e elas em
troca ofereceram-lhe uma velha
gaita-de-beiços, que ele aprendeu a tocar, em memória
daquele momento.
Terminou a sessão tocando canções árabes, alemãs, e uma
belíssima melodia para o seu salmo preferido:
"Qual o homem que deseja a vida
e quer longevidade para ver o bem?
Preserva a tua língua do mal
e os teus lábios de falarem falsamente.
Evita o mal e pratica o bem,
procura a paz e segue-a."
--
O Reuven Moskovitz morreu a 4 de Agosto de 2017, uma semanas antes de fazer 90 anos. Estava a preparar mais uma viagem à Alemanha, onde tinha agendado várias palestras sobre a Paz.
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