24 junho 2017

se não agora, quando?



Maria da Fonte entre tempos cruzados

Pedro Adão e Silva (Expresso, 24.6.2017)

A sociedade transferiu-se em massa para o litoral, mas preservou uma nostalgia do território, uma ligação à terra que não corresponde à sua ocupação efetiva

Convém não exagerar na confiança moderna com que enfrentamos a natureza, sobretudo quando os próprios riscos já não são apenas naturais, mas manufaturados. Os antigos chamavam a esta arrogância húbris e lembravam que ela tendia a ser punida. É também essa a lição de Pedrógão Grande e, de quando em vez, é bom que nos recordemos que não é avisado perseguir a natureza, pois esta “regressa a galope”.
É certo que falhámos de forma monumental na prioridade — evitar a perda de vidas humanas —, mas como nada sei sobre combate a incêndios, chamo a atenção para um outro aspeto: por (in)ação, o território português transformou-se de forma radical num curto espaço de tempo, acentuando um padrão de propriedade que já era muito fragmentado.
Por força de uma modernização tardia e abrupta, o abandono do mundo rural foi, entre nós, repentino e intenso. Neste processo, o interior ficou mais vulnerável e a desruralização tornou-se uma força irreversível, sem que tenhamos sido capazes de reinventar a paisagem.
Esta modernização tardia encerra um paradoxo, que, aliás, o sociólogo (aqui a qualificação é relevante) Augusto Santos Silva identificou há décadas. A persistência de tempos cruzados, nos quais moderno e tradicional coexistem, sem que nenhum se sobreponha. Podemos alargar o conceito à forma como os portugueses se relacionam com o território, com consequências para a tragédia persistente dos incêndios.
Num ímpeto modernizador, a sociedade portuguesa transferiu-se em massa para o litoral, mas preservou uma nostalgia do território, uma ligação à terra que não corresponde à sua ocupação efetiva. Enquanto individualmente se tenta preservar um passado rural que já não existe, o Estado tem de gerir um país num limbo — não é nem abandonado nem ocupado. Num país pobre, os proprietários não têm dinheiro para conservar a sua propriedade, mas, como não vivem dela, a sua salvaguarda não é assegurada pela economia.
Pelo caminho, o que já era um problema, uma estrutura de propriedade muito fragmentada, acentuou-se (em 14 dos 18 distritos, a propriedade é, em média, meio hectare e estimativas conservadoras apontam para que 10% do território não tenha dono conhecido). Este processo criou terreno fértil para incêndios.
Que fazer? A solução pode encontrar-se entrincheirada entre dois polos: o Estado não pode ir longe demais na pressão sobre a propriedade privada (mesmo que apenas em sede fiscal), combatendo o abandono a que muitas terras estão votadas, mas também não pode dar incentivos que favoreçam o latifúndio (que concederia racionalidade económica). Um Governo que seguisse este caminho poderia ter de enfrentar uma Maria da Fonte do século XXI. Mas talvez a tragédia destes dias sirva para superar este emaranhado de interesses contraditórios, no qual o material (a propriedade) se mistura com o simbólico (a ligação à terra).

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A análise de Pedro Adão e Silva, que trouxe do Expresso, é muito pertinente. Sinto-me mais optimista que ele em relação às possibilidades do Estado numa reforma da gestão das propriedades, e talvez até do próprio registo matricial. Se não for agora - agora que fomos testemunhas horrorizadas das consequências da nossa inércia - quando será possível mudar realmente? Este é o momento de lançar em Portugal uma reforma que permita uma racionalização económica do território agrícola e uma economia florestal em moldes que não ponham em risco a vida das pessoas e as suas casas.
Pessoalmente, não me incomodaria a ideia de um arrendamento compulsivo de longo prazo dos terrenos abandonados, e até da transferência da propriedade para o Estado, em caso de abandono efectivo durante um longo período de tempo.

E, desta vez, sei do que falo: contra mim falo.

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