22 junho 2017

o que as pessoas trazem consigo

O Joachim telefonou: "chego daqui a vinte minutos e os amigos pintores também vão passar pela nossa casa, mas não é preciso fazer nada para eles". Gosto imenso desses amigos, pelo que fui à quintinha buscar rúcula para uma grande salada, e esmerei-me na sopa de tomate fria. Mais umas fatias de pão velho ("adoro pão velho", disse a amiga, que é a da dicotomia vestido/groselha - como não gostar de quem exclama assim "adoro pão velho!"?), e uns biscoitos para compor a coisa ("que biscoitos maravilhosos! que ervas têm?", como não gostar etc.), ficou composto o jantar.

Pelo meio falou-se de exposições e de modelos, prometeram-me um ulmeiro descendente do nobre centenário que se exibe junto ao palacete da colónia de artistas, e rimos com a ideia de fazer brownies com manteiga enriquecida (para bom entendedor...) só para impressionarmos os nossos filhos.

E às tantas o nosso amigo, de 75 anos, começou a contar:

Quando a guerra estava a chegar ao fim, fugimos aos russos pelo Mar Báltico. Muitos anos mais tarde, a minha mãe ainda tinha pesadelos que lhe traziam de novo o pavor de entrar com os filhos num barco sabendo que, apesar de a vitória dos aliados  já ser certa, só metade das embarcações chegava ao seu destino, porque as outras eram atacadas e naufragavam.

"Entrar num barco sem saber se se chega vivo ao outro lado, como os africanos que no nosso tempo se lançam ao Mediterrâneo. Que desespero leva as pessoas a fazer uma coisa assim?", comentámos.

O nosso barco não foi atacado, e conseguimos chegar à aldeia da minha avó materna. Como éramos família, não nos consideraram refugiados. 

Eram tempos de muita escassez. A minha avó disse-me: "quando estiveres na casa dos teus primos, à mesa tens de fazer como eles. Se não comerem mais, não te serves outra vez." Eu fazia como os meus primos, e a minha tia dava-me a comida que sobrava, para levar para casa. Eu escondia tudo nos bolsos da bata, e contrabandeava para a minha mãe e o meu irmão, debaixo do nariz inquisidor da avó. 

Ninguém nos disse que não podíamos ir à fruta dos lavradores, e foi assim que matámos muita fome. Um dia, nas aventuras habituais com os meus amigos, descobrimos umas peras maduras num pomar fechado, e foi decidido que era eu quem as ia buscar, por ser o mais alto do grupo. Com a ajuda deles consegui empoleirar-me no muro, e quando me preparava para descer para o outro lado, vi que o dono estava lá em baixo a olhar para mim. "Desce desse muro, aqui para o meu lado", disse ele. "Anda descansado, que não te faço mal." Apanhou ele próprio as melhores peras da árvore, para mim e para os meus amigos, e abriu o portão para eu sair. Soube depois que o lavrador tinha perdido os seus dois filhos na frente Leste. 

Fui para a escola primária com cinco anos, e fui muito bem tratado. Como era muito magro, davam-me sempre o dobro da porção normal de pãezinhos de passas e de leite chocolatado. Ainda hoje adoro pãezinhos de passas. Mas o melhor de tudo era a oficial inglesa que trazia a comida. Tinha um uniforme de saia caqui, collants finos com costura na parte de trás da perna, e aquele boné em forma de barquinho. Nunca tinha visto nada tão bonito e elegante! Apaixonei-me por ela. Depois apaixonei-me pela minha professora. Queria casar com ela, e não me importava nada de passar a ter um filho ligeiramente mais velho que eu, e outro ligeiramente mais novo.

O meu pai era químico, físico e engenheiro. Em vez de o mandarem para a guerra, obrigaram-no a trabalhar na investigação de armas de aviões. Quando viu a guerra a chegar ao fim foi entregar-se aos ingleses, mas estes, ao verem que ele vinha do sector russo, mandaram-no para trás. Por sorte, o acordo de Potsdam previa que todos os prisioneiros de guerra ligados à aviação ficavam sob a alçada dos aliados ocidentais. Ao fim de umas semanas, os russos reenviaram-no aos ingleses, e ele acabou por se poder juntar à família. Ofereceram-lhe empregos formidáveis. O melhor de todos era no Canadá: o triplo do salário que recebia na Alemanha, dois carros, duas viagens à Alemanha todos os anos, escola paga. Mas a minha mãe não quis ir. Ficámos na Alemanha.

Surpreendo-me sempre com a quantidade de História que os alemães trazem consigo.


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