21 junho 2017

a responsabilidade da imprensa na propagação do ódio

Sobre o ataque terrorista da segunda-feira passada em Londres, as primeiras notícias que li em português (como esta, da TSF, entre outras) informavam que uma carrinha atropelara peões perto de uma mesquita. O que é verdade, sem dúvida. O problema é que esta notícia, ao omitir uma parte importantíssima dos factos (foi contra muçulmanos, movido por ódio islamofóbico), produziu automaticamente no leitor a ideia de se tratar de mais um ataque de terroristas islâmicos, e reforçou a ideia de que "estamos cercados". Pode argumentar-se que os jornais teriam publicado apenas a informação que consideravam fidedigna. No entanto, antes de ler as páginas em português, já eu soubera pelo Spiegel que se tratava de um ataque terrorista contra muçulmanos. Este desfasamento na informação é estranho, porque normalmente os meios de comunicação social portugueses são mais rápidos que os alemães.

Penso na importância das primeiras impressões, e pergunto-me como é que as pessoas vão arquivar esta informação. Ficará registada como um ataque dos terroristas islâmicos contra "nós"? Ou será que conseguirão corrigir a primeira impressão, e memorizar a diferença? É que desta vez são os "nossos" que estão a usar os mesmos métodos e o mesmo ódio para os atacar a "eles".

Os nossos meios de comunicação social - e falo em especial dos alemães - dão muito palco aos ataques de terroristas islâmicos, e quase ignoram os ataques de grupos nacionalistas que põem em risco a vida ou o bem-estar de estrangeiros que vivem entre nós. Por esse motivo, sentimos que vivemos sob ameaça, mas não nos damos conta das ameaças que pairam sobre os nossos vizinhos cuja nacionalidade, religião ou cor de pele é diferente da nossa. Mais ainda: criticamos (e bem) o erro de termos tolerado durante demasiado tempo o fundamentalismo islâmico, esquecendo que temos uma tolerância muito maior em relação à extrema-direita. Tolerância essa que grassa em toda a sociedade e nas instituições. Os jornais não se dão ao trabalho de informar sobre actos violentos da extrema-direita, e a polícia ignora demasiadas vezes essa possibilidade - como no caso do grupo neonazi alemão que entre 2000 e 2007 matou dez pessoas, quase todas de origem turca, e que só por acaso foi descoberto. Durante todo esse tempo a polícia não pôs sequer a hipótese de se tratar de terrorismo de extrema-direita, porque partia do princípio de que aqueles assassinatos seriam "coisas lá das máfias dos turcos".

Para dar uma imagem fidedigna da realidade, é essencial que a comunicação social trate estes ataques com o mesmo impacto que dá aos dos fundamentalistas islâmicos, e que esteja extremamente atenta para não alimentar involuntariamente preconceitos e medos. No caso deste atentado, era fundamental corrigir as notícias - a começar pelos títulos - mal se tivesse confirmado a motivação do seu autor. É também muito importante que haja informação sobre o que acontece de positivo nas comunidades de estrangeiros, em vez de informar apenas sobre os casos que delas dão uma imagem negativa. Por exemplo, que se dê mais relevo ao gesto do imã da mesquita junto à qual foi feito este atentado em Londres, que até à chegada da polícia protegeu com o seu próprio corpo o autor do atentado, não deixando que a multidão enfurecida lhe fizesse mal. Um dia que alguém venha com uma conversa do género "estes muçulmanos não são como nós, não se querem integrar e não respeitam as nossas leis", podemos lembrar este caso.

Que esta tragédia sirva ao menos para ver com mais clareza o que está em causa, e que a comunicação social tenha isso em conta quando faz as notícias: o problema não é a religião ou o contexto cultural, o problema é o ódio. O ódio que existe do nosso lado como do lado dos outros, e que mata. O ódio que pode ser involuntariamente alimentado por uma comunicação social movida por interesses de sobrevivência económica, e por isso obrigada a concentrar-se nos títulos que vendem melhor. Ora, o que vende melhor é quando nós somos as vítimas, e não quando as vítimas são outros. E o que vende melhor é o que reforça os nossos preconceitos. A questão é que, em última análise, a missão do jornalismo não é a sobrevivência económica - é a informação isenta e responsável. Se perderem isto de vista, acabarão por perder tudo. A começar pelos direitos e privilégios do jornalismo, que só se justificam com o cumprimento das suas imprescindíveis funções. 

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Quase a propósito: porque é que não nos passa pela cabeça organizar uma manifestação para explicar que não somos todos farinha do mesmo saco, nem somos todos perigos potenciais para as outras culturas ou religiões, mas exigimos isso dos muçulmanos quando há um atentado fundamentalista islâmico? 


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