31 maio 2017

"a Europa tem de permanecer unida"

No rescaldo da reunião do G7 neste Maio de 2017, que parece ter marcado o fim de uma era de estreita cooperação entre a Europa e os EUA, e das afirmações "explosivas" de Angela Merkel ("longe vão os tempos em que podíamos contar com outros. Nós, europeus, temos de tomar realmente o nosso destino nas nossas próprias mãos." - aqui, em alemão), Sigmar Gabriel deu uma entrevista na ZDF que pode marcar uma viragem importante para Portugal. Sigmar Gabriel é do SPD, e é actualmente o vice-chanceler alemão.

A entrevista está disponível aqui durante um ano. Traduzido (rapidinho, e mantendo o registo oral), é isto:

Klaus Kleber: O que aconteceu de tão dramático nos últimos dias que conduziu a esta mudança de tom repentina?

Sigmar Gabriel: Assistimos a vários acontecimentos. A visita do presidente americano à Arábia Saudita - o primeiro país que ele visita, um regime autocrático. Em vez de falar de direitos humanos, fornece armas em quantidades incríveis. Naquela região há armas em demasia. A seguir há uma cimeira da NATO, na qual ele se põe a dar lições aos colegas e se comporta de forma incrível em relação a um primeiro-ministro, empurrando-o para o afastar do seu caminho. Vemos também o encontro do grupo G7, as sete maiores economias ocidentais, que esteve, digamos assim, na origem do "mundo ocidental", sendo de "ocidental" não significa uma região geográfica mas uma ideia de coexistência, nomeadamente democracia e liberdade de expressão, e sobretudo a força do direito internacional em vez do direito do mais forte. E em todos estes acontecimentos assistimos a um governante dos EUA que se afasta cada vez mais destas ideias do mundo ocidental. Nos últimos dias o ocidente tornou-se mais pequeno.

KK: Significa isso que o "século americano" está agora a acabar devido a Trump?

SG: Não diria isso. Mas vemos que nos EUA há muitas pessoas que pensam de forma diferente. O presidente americano é um presidente eleito que em muitas questões já não concorda com, por exemplo, os europeus - ou muitos outros. E agora a questão é a da união da Europa, e de se tornar mais forte. Temos de defender as ideias de mundo ocidental, de internacionalidade, de abertura, e sobretudo de democracia e de uma sociedade liberal. Isso só é possível se conseguirmos resolver as nossas contradições internas, e se trabalharmos mais em conjunto com os outros e, naturalmente, se não desistirmos inteiramente das nossas ligações transatlânticas.

KK: Trata-se então, no fundo, de defender os valores europeus contra o presidente americano?

SG: Não são valores europeus, são valores universais. Repito: as ideias de democracia, de direitos humanos e sobretudo de direito internacional são mais do que a soma dos interesses individuais. Não se trata de o mais forte impor os seus interesses, mas que todos tenham relações estáveis e que contribuam para a paz. O que é grave é que os nossos colegas nos EUA parece não se terem dado conta de que, se abandonarem este espaço, outros virão ocupá-lo. Por exemplo, a China, com perspectivas completamente diferentes. Temos de estar atentos para que os standards que temos defendido no plano internacional, em nome daqueles daqueles valores, não sejam cada vez mais enfraquecidos. Por isso é tão importante que a Europa os defenda.

KK: Então a Europa deve tornar-se uma âncora - uma Europa que ultimamente tem feito lembrar um bando de galinhas enxotadas, e que, por exemplo, nem sequer é capaz do gesto simbólico de dividir de forma justa alguns milhares - entre milhões - de refugiados entre os seus países membros. Já nisso a União Europeia está a falhar, e de um momento para o outro deve erguer-se para substituir os EUA?

SG: Não substituir, mas defender os seus próprios valores com mais empenho. Não quero ignorar a crítica à Europa, mas facto é que em mais nenhum lugar do mundo se vive com tanta democracia, liberdade e segurança como na Europa. Não há no mundo inteiro nenhum projecto comparável e o que temos agora de fazer é, de facto, tratar de duas questões: nós, os alemães, temos de ajudar a Europa a tornar-se mais forte - e sobretudo temos de parar de desrespeitar outros países, e temos de parar de lhes dar lições. Nos últimos anos fizemos isso com demasiada frequência. Temos de ajudar países como a Itália, a França, e outros, para que as suas economias cresçam mais e haja mais emprego. O que é também no nosso próprio interesse, porque 60% das nossas exportações não são para os EUA ou a China, mas para a União Europeia. E se os outros virem que a Alemanha está disposta a isso também estarão dispostos a ajudar a resolver os nossos problemas, nomeadamente o enorme número de refugiados. Enquanto existir apenas indiferença mútua não vamos a lado nenhum. Ao discurso sobre dar mais força à Europa devem agora suceder acções. Temos uma boa oportunidade com o novo presidente francês. E então haverá outros dispostos a falar connosco para resolver o problema da migração e dos refugiados. As duas questões estão interligadas. Enquanto tratarmos os países do Sul da Europa e também a França com uma atitude de mestre-escola na política financeira, forçando-os a não fazer nada senão poupar, não lhes deixando ar para respirar, enquanto fizermos isso eles não nos vão ajudar. Temos de nos reencontrar, e isso tem de suceder ao nível dos factos, e não apenas dos discursos de domingo.  

KK: Significa isso que o programa eleitoral do SPD a respeito da Europa é uma nova generosidade, porque Trump força a Europa a isso?

SG: Essa é justamente a versão errada. Como se estivéssemos a dar algo aos outros por magnanimidade nossa. Mas nós não somos quem paga, na Europa, nós somos quem lucra. Somos campeões mundiais de exportações e campeões europeus. Isso só é possível se vendemos aos outros países mais do que eles nos vendem a nós, ou seja, quando entra aqui mais dinheiro do que aquele que sai para outros países. O investimento no futuro da Europa é também um investimento nos postos de trabalho dos nossos filhos. Mais uma vez: 60% das exportações dos nossos produtos e serviços são para a Europa. São eles quem compra os nossos carros, as nossas máquinas, a nossa electrotecnia. Mas só enquanto a sua economia está forte. Se a sua situação económica piorar, mais cedo ou mais tarde a nossa também piora. Por isso mesmo, essa história de generosidade e de fazer mais por eles é a versão errada. A correcta é esta: a Europa só conseguirá ganhar se permanecer unida e, já agora, isso tem de acontecer independentemente de haver ou não um Trump. A Europa precisa de se tornar mais forte a partir de si própria.

3 comentários:

Ana Paula disse...

Obrigada.

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...

Muito interessante, Helena. Obrigado!

Goldfish disse...

Eu não escrevo isto todas as vezes que publicas um post só porque ia ser muito chata: obrigada, é um prazer ler-te (e ver pelas lentes da tua máquina fotográfica, já agora) Boa sorte para o Joachim e força para a mãe