15 março 2017

comícios na Alemanha com ministros turcos

O conflito ligado ao cancelamento de comícios turcos em território alemão, que veio complicar ainda mais as relações entre a Alemanha e a Turquia e que se repetiu com ainda mais vigor nos Países Baixos, suscitou-me algumas questões. Limito-me a falar do caso alemão, porque é a informação a que tenho acesso - mas admito que se possam encontrar alguns paralelos para a situação no país vizinho.
Deixo indicação para os sites de onde retirei a informação. Todos os links são para textos em alemão, excepto nos casos expressamente indicados.

Um artigo de perguntas e respostas no Tagesspiegel revelou-se muito informativo, e por isso transcrevo parcialmente os dois primeiros pontos, que se referem a questões legais e diplomáticas.
 
1. É permitido que políticos estrangeiros façam campanha eleitoral na Alemanha?
 
A Constituição alemã garante a liberdade de expressão e de reunião para todos. O artigo 47 da "Lei dos Estrangeiros" (Aufenthaltsgesetz - texto em inglês) estabelece que os estrangeiros podem desenvolver actividades políticas em território alemão, excepto nos casos de (entre outros):
- ameaça à coexistência pacífica entre alemães e estrangeiros
- ameaça à segurança e ordem públicas
- ameaça aos interesses externos da Alemanha
- apoio a tendências ou partidos estrangeiros cujos objectivos e prática são incompatíveis com uma ordem estatal baseada no respeito pela dignidade humana.

[ O texto integral desse artigo, em inglês:


Section 47 Prohibition and restriction of political activities
(1) Foreigners may pursue political activities within the bounds of the prevailing general statutory provisions. A foreigner’s political activities may be restricted or prohibited if they
1. impair or endanger the development of informed political opinion in the Federal Republic of Germany, the peaceful co-existence of Germans and foreigners or of different groups of foreigners in the Federal territory, public safety and law and order or any other substantial interests of the Federal Republic of Germany,
2. may be counter to the interests of the Federal Republic of Germany in the field of foreign policy or to the obligations of the Federal Republic of Germany under international law,
3. contravene the laws of the Federal Republic of Germany, particularly in connection with the use of violence,
4. are intended to promote parties, other organisations, establishments or activities outside of the Federal territory whose aims or means are incompatible with the fundamental values of a system of government which respects human dignity.

(2) A foreigner’s political activities shall be prohibited if they
1. endanger the free and democratic constitutional system or the security of the Federal Republic of Germany or contravene the codified standards of international law,
2. publicly support, advocate or incite to the use of violence as a means of enforcing political, religious or other interests or are capable of inciting such violence or
3. support organisations, political movements or groups within or outside of the Federal territory which have initiated, advocated or threatened attacks on persons or objects in the Federal territory or attacks on Germans or German establishments outside of the Federal territory. ]


2. Nesse caso, a actual política de Erdogan é motivo para impedir esses comícios, ou não?



Na Alemanha há consenso em todos os partidos sobre Erdogan estar a abusar da lei marcial, após a tentativa de golpe, para reforçar o seu poder e destruir a oposição. Por outro lado, o presidente quer que o povo se pronuncie sobre as novas regras, e a Alemanha está a colaborar para que os turcos residentes na Alemanha possam participar nesse referendo.
O governo federal alemão não quer pronunciar-se sobre a eventual proibição de Erdogan fazer um comício neste país. Espera as deliberações relativas a este assunto da Comissão de Veneza, do Conselho Europeu, que serão apresentadas na próxima semana. Até lá, fala-se em liberdade de expressão e sublinha-se que o cancelamento de alguns comícios foi devido a questões técnicas do âmbito do poder regional.
(O que me parece uma cobardia, mas também se pode chamar diplomacia e contenção de danos.)



Três notas complementares ao artigo do Tagesspiegel:
- No caso concreto destes comícios com políticos turcos, Cem Özdemir (Verdes, filho de turcos) informou que o que os ministros turcos andam a fazer é ilegal, porque a lei turca proíbe esses comícios fora do país.
-
Quando o Obama veio a Berlim, no âmbito da sua primeira campanha eleitoral, a Merkel não o deixou mostrar-se em frente à Porta de Brandeburgo. E o Obama, ao contrário do que tem sido a reacção dos ministros turcos, em vez de fazer um braço de ferro e teimar que podia falar para quem lhe apetecesse a partir da Embaixada do seu país (que é mesmo ao lado da Porta de Brandeburgo), pediu licença para usar outro lugar.
- Gostava de saber se foram organizadas sessões de esclarecimento na Alemanha com a participação de defensores dos dois lados do referendo, ou grandes eventos para promover o "não".


As questões sociais são mais complicadas. Num debate televisivo sobre os "turcos alemães", realizado no princípio desta semana, levantava-se a questão: como é possível apreciar a liberdade e a democracia na Alemanha e apoiar Erdogan na Turquia, que representa exactamente o seu contrário?
Esta contradição pode ser gerada pelo sentimento de não pertença à sociedade alemã (como se fossem cidadãos de segunda, com dificuldades para, por exemplo, arranjar um bom emprego ou conseguir casa) que leva as pessoas a aderir a um presidente turco forte, e a voltar as costas ao governo alemão, que sentem não proteger os seus interesses.
Contudo, as contradições permanecem: pessoas que defendem a liberdade de expressão dos ministros turcos, mas não se manifestam contra os ataques à liberdade de expressão na Turquia, contra os jonralistas metidos na prisão e os presos políticos acusados de serem "terroristas",  ou que se queixam de discriminação e do racismo mas apoiam um governo que persegue minorias.



Se considerarmos os discursos que Erdogan tem feito para turcos na Alemanha, a questão torna-se ainda mais complexa. Nesses encontros, Erdogan reforça a ideia de que os turcos que vivem neste país não são protegidos pelo Estado alemão, mas que podem contar com o presidente turco, que nunca os abandonará. Em 2008, em Colónia, disse a 16.000 pessoas (muitas delas com passaporte alemão, e de famílias que já iam na 3ª geração na Alemanha) que a assimilação era um crime contra a Humanidade, ao qual ninguém se devia sujeitar; louvou-as por se manterem fiéis à língua, à fé, aos valores e à cultura da Turquia; aconselhou-as, contudo, a aprender alemão porque isso lhes traria mais vantagens; e sugeriu-lhes que deviam aproveitar a sua posição na Alemanha para fazer lobbying em defesa dos interesses turcos.

Na Alemanha fala-se muito em integração e debate-se permanentemente sobre a gestão das diferenças de culturas e valores para tentar encontrar um equilíbrio satisfatório para todos (casos como permitir que uma professora dê aulas com a cabeça coberta - este foi tema há 15 anos -, ou aceitar que uma rapariga não frequente as aulas de ginástica e natação porque os pais não a querem misturada com rapazes, ou tratar um divórcio de muçulmanos de forma diferente por "eles terem regras diferentes", entre milhentos exemplos). Num contexto destes, é difícil aceitar que Erdogan venha apelar às pessoas para que elas permaneçam fiéis à sua cultura e aos seus valores custe o que custar. Estas suas afirmações criam uma situação de instabilidade interna, nomeadamente no que diz respeito à aceitação das leis e dos princípios básicos alemães, e aumenta o potencial de conflito entre a minoria turca e os outros grupos que vivem neste país. E está mesmo a pedir a reacção básica de "quem não está contente com as leis deste país faça o favor de procurar um país com leis mais do seu agrado". Não subscrevo estas reacções de "vai prá tua terra, pá" como desejáveis, mas não tenho como ignorar que o Erdogan tem tido um papel activo e deliberado na criação deste ambiente de rejeição mútua e no reforçar da ideia de que os turcos vivem na Alemanha fechados sobre si próprios e disponíveis para formar uma 5ª coluna na Democracia alemã.

A realidade é que há muitos turcos que conseguiram fazer o seu caminho pessoal de gestão das duas culturas e trouxeram um enriquecimento à sociedade alemã (políticos, jornalistas, actores, músicos, etc.), e muitos mais que, sem terem conquistado uma posição de grande visibilidade, vivem em coexistência pacífica com os alemães e com todas as outras minorias (vou ignorar o problema gravíssimo da violência neonazi contra os turcos).

As provocações de Erdogan podem levar a uma viragem na posição destes turcos ou descendentes de turcos que estão bem integrados. Para aumentar o seu poder, Erdogan não hesita em criar problemas noutros países. Pergunto-me se os países têm de se sujeitar a convulsões sociais devidas ao cálculo político de um governante de outro país.




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