14 março 2017

auto-de-fé

O escritor Rentes de Carvalho afirmou no seu blogue que vai votar Wilders. Eis as suas razões:

"Com as eleições na Holanda à porta, nos últimos dias tenho dado umas quantas entrevistas, e em determinado momento – porque tenho dupla nacionalidade – os entrevistadores, com ou sem rodeios, querem saber da minha intenção de voto, quase sempre subentendendo a resposta que de mim esperam.
Digo então, para surpresa de quase todos, que vou dar o meu voto a Wilders. E pacientemente explico que partilho a sua ideia de deportar os marroquinos que, na Holanda, encabeçam as estatísticas da criminalidade; que a Holanda teria vantagem em se separar da EU (o que não acontecerá); que se deveriam ter fechado as fronteiras (o que está provado  ser impossível ); que os idosos, os pobres e os deficientes não recebem os cuidados a que têm direito; que mesmo um país rico e bem organizado não tem capacidade para absorver a vaga de refugiados – problemática que os sucessivos governos empurram com a barriga no aguardo de milagres.
Discordo de Wilders pela irrealidade das suas intenções, pelo seu autoritarismo, pela nada democrática prática de ter um partido em que se pode votar, mas não aceita filiados.
 Mas dando-lhe o meu voto - o meu protesto - espero contribuir para que, alcançando um bom resultado eleitoral, ele tenha em mãos a possibilidade de fazer uma oposição construtiva, que seja um contrapeso a vinte e tal anos de governos tão politicamente correctos que a grande maioria dos cidadãos se pergunta de que maus sonhos é prenúncio a realidade que estão a viver."

Uma resposta possível seria dizer-lhe que
depois do Brexit e do Trump já se viu que votos de protesto podem ser um trágico tiro pela culatra, e que algo está muito mal na Democracia quando se vota numa pessoa da qual se discorda em pontos fundamentais. Se apanhasse o Godwin distraído, talvez até referisse que os nazis chegaram ao poder por via eleitoral, e que muitos eleitores os terão escolhido como um contrapeso a 15 anos de república de Weimar. 
 
Não me parece muito complicado debater nestes termos, mas o que tenho visto nas redes sociais são insultos e promessas de nunca mais ler um livro dele, e até de os queimar. Pelos vistos nem precisamos de ser invadidos pelo daesh, já vamos adiantando o trabalhinho de intolerância e violência simbólica...

Confesso que também a mim acontecem esses impulsos. Ao ver a página de facebook da Maria Vieira fiquei em estado de choque e descrença: não dá para acreditar que a actriz cujo trabalho aprecio tanto há décadas tenha aquele tipo de posição ideológica. Perguntei-me se seria capaz de rir da mesma maneira com as figuras dela na Gaiola Dourada. E depois lembrei-me da frase - e do tom peremptório em que foi dita - do judeu sobrevivente de Auschwitz que gostava muito de Wagner: "Quero lá saber do anti-semitismo do Wagner! Fazia uma música genial, é isso que me interessa."

Em suma: não vamos voltar aos autos-de-fé, não vamos queimar livros e votar pessoas ao ostracismo devido às suas ideias. Tanto mais que estas reacções lembram muito (Ó Godwin, olha que giro aquele passarinho que está a passar ali, consegues ver? isso, isso, esforça-te, daqui a nada já o vês, e olha que é bem bonito) aquela altura da História alemã em que muita gente acreditava que os judeus deviam ser mantidos longe da cultura porque a conspurcavam.


4 comentários:

xilre disse...

O erro é pensarmos que os escritores (ou os artistas) têm que ser diferentes do comum dos cidadãos. Um escritor escreve, uma atriz representa. De resto, são gente normal. Desde que se lhes reconheça apenas a autoridade nas suas áreas de competência, tudo vai bem. Avalie-se o escritor pelo que escreve e a atriz pelo que faz em palco. De resto, que prossigam lá a sua vidinha -- como o mais anónimo dos anónimos (obviamente, desde que não queiram é ter o ovo e a omelete: poderem opinar sem escrutínio como anónimos e procurarem os holofotes a cada esquina, a dizer: estou aqui, estou aqui).

if disse...

Eu entendo a cada um o seu voto. De louvor, de protesto. É o poder. Mas pode ?!

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...

É isso mesmo, mas sinto que algo me impediria de gostar da música de Wagner, ou Debussy, se acaso a minha Mãe tivesse sido gaseada em Auschwitz. Ou de gostar dos Filmes do Ant.º Lopes Ribeiro se acaso o meu Pai tivesse morrido desidratado no Tarrafal, por exemplo.

Assim como deixei de ser amigo da AMI, de longa data, mal soube que Fernando Nobre se candidatara a Deputado pelo PSD, como deixei para sempre de aderir às campanhas do Banco Alimentar Contra a Fome a seguir a uma intervenção pública desbragada da sua patroa, tal como só em último recurso desesperado voltarei a entrar num «Pingo Doce», "apenas" por causa das posições anti-democráticas do Soares dos Santos, etc., etc., etc....

Acredito que ser um CIDADÃO politicamente activo e consciente, numa Sociedade livre e democrática, é muito mais de que apenas votar: é dar um sentido político coerente às suas banais opções de vida.

Helena Araújo disse...

Xilre,
também me parece que é por aí.

if,
estamos a falar da Democracia. Por meio do voto, as pessoas dizem o que querem para o país. Votos de protesto (em palhaços - querem circo? / em neonazis - querem guerra?) são um ataque à ordem democrática.
Os problemas dos sistema democrático não se resolvem suicidando a Democracia.

Conde,
não me compliques a Weltanschauung! ;)
O tal judeu que conheci perdeu muitos familiares em Auschwitz, e gostava da música de Wagner. E eu, que não perdi ninguém, não gosto da Leni Riefenstahl, mas reconheço que era uma realizadora e uma fotógrafa genial.
Não tenho a certeza que seja boa ideia fazer pagar o justo (a AMI, o Banco Alimentar) pelo pecador (as limitações das pessoas à frente dessas organizações).

Concordo inteiramente com a tua última frase. Embora as minhas opções sejam por vezes diferentes das tuas.