No pátio, em frente à maquete que mostra a área de acesso reservado (na foto, a área em branco), no centro da qual se encontra a prisão (cinzento), e as casas à volta (cinza), contam-nos que os guardas da prisão viviam nessas casas, e ainda vivem. E depois, como se não fosse nada, acrescentam: "mas entretanto já se habituaram ao facto de haver antigos prisioneiros a fazer as visitas guiadas, e já não vêm cá fazer distúrbios".
Nos mapas da RDA, esta zona estava marcada como terrenos baldios. E de certo modo continua a sê-lo, como pude verificar após a visita, quando procurava a casa Lemke, de Mies van der Rohe, que é nesse bairro. Enganei-me ao perguntar a direcção do museu a uma senhora que estava a entrar em casa: em vez de perguntar pela Oberssestraße, a rua da famosa casa do arquitecto, disse Genslerstraße, que é a rua da prisão. Estávamos a 300 metros do local, a senhora reconheceu perfeitamente o nome, mas não conseguiu dizer-me onde era.
Passámos da maquete do pátio para o edifício onde os soviéticos instalaram o primeiro campo prisional, no fim da guerra. Era na cave de uma antiga cozinha industrial, um sítio insalubre, húmido e sem janelas, a que chamam "o submarino". Os prisioneiros - desde os suspeitos de serem nazis aos que se opunham ao regime comunista - passavam semanas amontoados em quartos sem ventilação, com um balde a fazer de sanita e um estrado de madeira com palha onde dormiam na posição obrigatória: de costas, com as mãos em cima da barriga. A luz não se apagava nunca, e se um prisioneiro não estava a dormir na posição certa os guardas gritavam e batiam nas portas de modo a acordar todos os prisioneiros. Os interrogatórios eram feitos durante a noite - a tortura do sono era uma constante para todos.
As celas solitárias eram minúsculas, e o catre de madeira era demasiado curto para uma pessoa poder esticar as pernas. Outras celas tinham o chão elevado na zona da porta, para permanecerem inundadas. Num canto da cave instalaram as celas especiais para "acalmar" os prisioneiros. Com paredes almofadadas, e mais nada. Nem balde. Metiam ali os prisioneiros, fechavam a porta, apagavam a luz.
Contaram-nos a história de alguns dos prisioneiros da Stasi. A mais nova, Erika Riemann, foi presa aos 14 anos por ter pintado com o seu bâton os bigodes imponentes na fotografia de um figurão que estava na cantina da sua escola. Era o Estaline. Foi condenada por actividades anti-soviéticas, passou oito anos na prisão - nomeadamente no terrível campo nazi de Sachsenhausen, reaberto pelos russos, onde chegou a ser metida num duche com a informação de que ia ser gaseada. E quase se podia dizer que, apesar de tudo, teve sorte: se tivessem considerado que era sabotagem, não se livrava da pena de morte.
Outros prisioneiros eram obrigados a ficar sentados em determinadas cadeiras por longos períodos, sem motivo aparente. Alguns deles morreram com cancros raros - e depois da queda do muro descobriram que a Stasi tinha estranhos aparelhos de raio X por trás de paredes de papelão.
O antigo prisioneiro que conduziu o meu grupo pelos corredores de terrível memória chama-se Mario Thom, e foi preso aos 17 anos por tentativa de fuga. Fala com vivacidade e raiva, conta a sua própria história com humor, solta suspiros fundos de desalento e frustração. Em certos momentos faz-nos rir, noutros - quando imita a violência e a perfídia dos agentes da Stasi - faz-nos estremecer de medo e repúdio. No final, perguntei-lhe como é que aguenta percorrer quotidianamente esses traumas. Respondeu que pede dispensa por uns dias, quando sente que começa a chegar ao seu limite.
A visita durou noventa minutos. Eu tentava ouvir e fixar tudo, e ao mesmo tempo fotografar à pressa.
Aqui deixo algumas imagens, e as histórias como o Mario Thom foi contando e eu lembro:
Esta era uma das carrinhas que levava os "inimigos do Estado" para a prisão. Era um veículo comercial bastante comum nas ruas da RDA. Para disfarçar, a Stasi pintava o nome de um negócio qualquer, "Frutas" ou "Limpeza a seco". Lá dentro havia 5 compartimentos minúsculos e sem janelas para os prisioneiros, que eram levados por rotas sinuosas para perderem completamente a orientação. O carro entrava numa garagem profusamente iluminada, os capturados passavam repentinamente da escuridão absoluta para o excesso de luz, e eram conduzidos pelos corredores aos pontapés, por guardas a quem tinham dito que se tratava de terríveis inimigos do povo. Os próprios guardas estavam sob vigilância, e qualquer cedência de humanidade seria punida.
Quando a RDA quis ser aceite pela comunidade internacional, acabaram as torturas físicas. Em compensação, refinaram a tortura psicológica. Em Potsdam podia-se estudar "psicologia operativa" - aprender maneiras de dominar, manipular, quebrar uma pessoa.
"Essa gente ainda anda por aí, fazem carreiras de sucesso como advogados, por exemplo.", dizia o Mario, com um dos seus suspiros de profunda frustração. Antes tinha falado dos tantos responsáveis da Stasi que continuaram a sua vida placidamente, como anteriormente tinha acontecido com os nazis. "Andam entre nós, e fartam-se de ganhar dinheiro. O dinheiro fala com o dinheiro. Não temos hipótese."
Falava-nos no pátio de roseiras, que nenhum prisioneiro político da RDA podia ver, mas onde Mielke pôde passear durante o período de prisão preventiva que lá passou. Erich Mielke era o chefe da Stasi, e foi o último prisioneiro da sua própria prisão.
O edifício prisional que os próprios presos políticos construíram tinha celas solitárias, com janelas de tijolos de vidro para os prisioneiros não verem o exterior. Havia algumas celas duplas, para meter junto ao prisioneiro um agente da Stasi que tentava ganhar a sua confiança. Um fio eléctrico com inúmeras emendas estendia-se ao longo dos corredores. Era um sistema muito simples de alerta: se um soldado puxasse o fio, a ligação soltava-se e quebrava a corrente. Em menos de vinte segundos o corredor enchia-se de polícias que ajudavam o colega em apuros, e levavam o prisioneiro para um lugar onde se "acalmaria".
A prisão tinha horários e regulamentos rígidos. Os prisioneiros levantavam-se sempre à mesma hora, e ficavam obrigados a ficar sentados no banco até à hora de ir dormir. Nada de passeios, nada de livros ou papel para escrever. Nada de nada. Isolamento total. Quando as luzes se apagavam, era o sinal de que se deviam deitar.
Durante a noite, de 10 em 10 minutos um soldado vinha verificar se estava tudo bem. Abria a janela, acendia a luz. Caso o prisioneiro não estivesse a dormir como devia
- aqui o Mario deu um pontapé violento no ferrolho mais baixo da porta, gritou "PONHA-SE NA POSIÇÃO REGULAMENTAR!", deu um murro na porta, e fechou a janela com todo o estrondo do metal -
todo o corredor era acordado com a barulheira.
Junto a cada porta havia vários interruptores: para as luzes dentro da cela, e para accionar o autoclismo, de modo a impedir que os prisioneiros contactassem uns com os outros pelos canos.
Havia outro método de contactar os vizinhos: batendo com os nós dos dedos na parede. Um toque, A, dois toques, B. Uma conversa inteira a contar batidas. Às vezes os prisioneiros não se davam conta de que tinham levado o amigo da cela ao lado, e o novo ocupante era um agente da Stasi.
Quando levavam um prisioneiro pelo corredor, acendiam-se candeeiros vermelhos, para avisar que todos os outros deviam permanecer fechados. Os prisioneiros não deviam ter contacto com outros seres humanos. "Os polícias não contavam propriamente como seres humanos", dizia o Mario. "Se acontecia de estar no corredor quando passava outro prisioneiro, obrigavam-me a virar para a parede e a olhar em frente. Mas eu era curioso, arranjava sempre maneira de espreitar. Hehehehe. O pior era quando depois me acalmavam."
Na sala de identificação dos prisioneiros tiravam fotografias, tiravam as medidas do corpo e revistavam o corpo nu. "Com uma luva de borracha", acrescentou o Mario, para ter a certeza que nós percebíamos mesmo. A princípio só havia polícias homens, e eram eles que revistavam as mulheres. Nenhuma das que passou por isso conseguiu até hoje superar e esquecer. Claro que ninguém tinha nada escondido - eram capturados à traição, não contavam ir parar àquela casa. Era simplesmente parte da tortura e da técnica para quebrar as pessoas.
[ Uma das salas de interrogatório intrigou-me, porque tinha o quadro de um palácio sobre a janela para a divisão onde se encontrava o prisioneiro. Não apenas o toque kitsch no coração do terror, mas também a imagem escolhida. Não esperava encontrar num edifício da Stasi imagens de um edifício como tantos que a RDA destruiu por motivos ideológicos. ]
Numa sala de interrogatórios, o Mario Thom sentou-se no lugar do polícia, apontou o banco junto à parede onde o prisioneiro tinha de se sentar, falou das lágrimas irreprimíveis quando, ao fim de muitos interrogatórios, o prisioneiro era convidado a sentar-se na cadeira à mesa. Ser tratado como pessoa, após semanas ou meses de isolamento e humilhações! Alguns não aguentavam, e desfaziam-se nesse preciso momento.
Foi nesta sala que Mario Thom contou a sua história. Falou das incongruências do sistema, que desde sempre o tinham incomodado. Os pais, músicos famosos, podiam sair do país, mas ele não. Na escola, diziam-lhe coisas que não faziam sentido. Proibiam-no de dizer "muro", porque era "a barreira de protecção anti-imperialista". Mas ele morava perto do Checkpoint Charlie, e não percebia como havia tantos imperialistas a entrar na RDA, e ninguém da RDA a sair. Desde cedo, na escola primária, eram obrigados a entrar nas organizações do partido, e a comportar-se com aprumo militar. Nas aulas de desporto treinavam o lançamento de objectos com granadas de mão. No liceu, os Kiss - a sua banda favorita - eram proibidos. Por causa do "SS" no nome. Ele protestava, rezingava, perguntava. Não se dava por satisfeito com as respostas que recebia. Aos catorze anos foi metido num internato para jovens com problemas de socialização. Mais tarde, fez parte do grupo que mais contribui para encher as prisões da RDA: os que tentavam fugir. Acrescentou que o segundo grupo maior de prisioneiros eram os "associais" - os que se recusavam a trabalhar. Na RDA, o trabalho era um direito e um dever.
Ele queria trabalhar. Mas era como músico, como baterista. Não o deixavam, porque para isso tinha de ter um curso superior, e para ter um curso superior tinha de fazer 3 anos de tropa. Logo ele, que era mais tipo "imagina que há guerra e nenhum soldado comparece". Teve de se sujeitar ao trabalho que lhe arranjaram. Infelizmente, o único que "estava disponível" era numa cervejaria. Logo ele, que detestava essa bebida, e foi sujeito a provas iniciáticas como beber um balde de cerveja logo pela manhã.
Aos dezassete anos, durante uma discussão familiar, o pai usou a frase típica "enquanto tiveres os pés debaixo da minha mesa, obedeces!" Ele levantou-se, e saiu de casa. Primeiro foi até Rostock, no Mar Báltico, mas a mãe do amigo a quem pediu ajuda recambiou-o para Berlim. No comboio, decidiu ir para Praga, para casa da avó checa. Chegado a Praga, ocorreu-lhe a brilhante ideia de continuar caminho, e tentar escapar pela Hungria. Tudo estava a correr bem, até que chegou à fronteira da Hungria. Era o Danúbio. Como é possível ser tão palerma que se nem se olha para um mapa antes de tentar fugir do bloco de Leste?, perguntava-nos o Mario, a rir. Foi avançando ao longo do rio, na esperança de que em algum momento as margens se aproximassem, mas elas ficavam cada vez mais afastadas. Às dez da noite escondeu o saco algures, e atirou-se vestido à água. Era Outubro, mas nem reparou no frio. Daí a nada apareceu um barco da polícia, com um holofote giratório. De cada vez que a luz chegava perto dele, mergulhava. Parecia um filme. Conseguiu chegar ileso à outra margem. Ao sair da água sentiu o frio em toda a sua crueldade. Durante meia hora foi rastejando num terreno pantanoso, até encontrar as primeiras casas, e carros com matrículas diferentes das que conhecia da RDA e da Checoslováquia. Tocou a uma campainha para pedir ajuda. Um homem abriu a porta, deixou-o entrar, indicou-lhe a casa de banho. Ainda nem tinha começado a despir-se, já estava a ser levado por polícias húngaros. Tanto azar tivera, que fora pedir ajuda a um responsável da fronteira. Pouco depois, na esquadra, ao ver o respeitinho com que os húngaros tratavam a polícia alemã, e a arrogância com que estes davam ordens, sentiu-se numa cena do período nazi. Pareciam soldados da SS numa zona ocupada pelos alemães.
Em menos de nada estava num avião sem janelas a caminho da RDA, e a ser recebido efusivamente por um interrogador bem-disposto e afectuoso.
- Então, meu rapaz, que foi isso? Quando planeaste a fuga?
- No comboio, a caminho da fronteira da Hungria.
- Quem sabia dos teus planos?
- Ninguém! Nem eu. Afinal de contas, não tinha planos.
- Tens conhecidos no Oeste?
A conversa foi correndo de forma aprazível, até que o polícia lhe falou das vantagens de viver na RDA, e da sua ingratidão por querer virar costas a tudo isso, e ele perguntou o que queria dizer exactamente a frase "liberdade de movimentos".
- Qual é a dúvida? Os cidadãos têm toda a liberdade de movimentos dentro das fronteiras do país.
- E porque é que não nos deixam sair?
Nesse momento, o Mario, que nos contava tudo isto sentado na cadeira do polícia, deu um salto para a frente, e encostou a sua cara de furia diabólica à cara de uma das visitantes, sentada no banco do interrogado:
- PENSAS QUE BRINCAS COMIGO? OLHA QUE TE POSSO TRATAR DE FORMA BEM DIFERENTE! ATÉ AGORA, CONSEGUIMOS QUEBRAR TODOS OS QUE PASSARAM POR AQUI!
Nem todos, explicou-lhe mais tarde outro prisioneiro. E tu vais-te safar. Com a tua idade, no máximo dão-te ano e meio.
Ano e meio!, comentava o Mario para nós, com um sorriso. Naquela idade, ano e meio era uma eternidade!
Ficou seis meses. Compraram-no. Os pais pediram ajuda ao Vogel, o famoso advogado que tratava desses casos com a RFA. Um dia, disseram-lhe que ia falar com o seu advogado, e levaram-no da cela para um encontro. Não trocaram uma única palavra. O Vogel disse ao polícia "é este", e assinou uns papéis. Uns dias depois estava em Berlim ocidental.
"Parece que valho 90.000..." - sorriu para nós, deu umas palmadinhas no próprio ombro, e soltou um dos seus suspiros fundos.
"Ninguém devia ser comprado, e muito menos vendido."
A visita continuou para o comboio de prisioneiros e a "jaula do tigre". Era o pátio onde permitiam aos prisioneiros apanhar um pouco de ar. Um pátio que já nos parecia minúsculo, e que na verdade eram dois. No chão, via-se a marca da parede que lá existira. Os prisioneiros eram obrigados a andar em círculo, e a manter uma distância de um metro da parede. O que implicava que andavam simplesmente à volta do escoadouro de água no centro do cubículo.
Em princípio, tinham direito a 30 minutos por dia. Mas variava: nos dias de sol podiam ser só 10 minutos, e nos de mau tempo podia perfeitamente ser mais de uma hora. Com aquelas pantufas de pano que víramos nos quartos, uma hora à chuva e à neve.
Ao fundo do pátio entre os edifícios prisionais vi um prédio alto. Lembrei-me do Jorge Semprun, que após a libertação de Buchenwald entrou na casa de uma aldeia próxima. Pediu para ir à sala, parou à janela a olhar para o campo de concentração onde tanto sofrera, e a velhinha comentou "é uma paisagem bonita, não acha?"
Os prédios ao fundo do pátio não eram de apartamentos de velhinhas teimosamente inocentes. Naquele, verde, faziam os aparelhos de escuta que a Stasi espalhava pelas casas dos suspeitos.
Perto desse ficava o arquivo da SS, que membros da Stasi estudavam com toda a atenção - para aprender métodos, dizia o Mario. E ao lado eram as oficinas onde se faziam os passaportes falsos que permitiam aos terroristas do Baader-Meinhof/RAF escapar.
No final da visita o Mario falou-nos da exposição, e da livraria do memorial, onde "podemos encontrar livros sobre o passado da Angela Merkel na RDA".
Era tarde, não vi um nem outro. Mas quero voltar à prisão de Hohenschönhausen, e ouvir os relatos de outros antigos prisioneiros.
1 comentário:
Sempre que ouço relatos relacionados com estas situações fico com a sensação que é tudo inventado, que ninguém pode fazer tanto mal a outra pessoa, mas, infelizmente, não são inventados.
Lá como cá, uma frieza e uma crueldade incrível!
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