16 setembro 2016

chibo, coscuvilheiro, bisbilhoteiro, intrigante, intriguista, mexeriqueiro - noutro registo: ignominioso, abjecto, afrontoso, aviltante, desonroso, indecoroso, infame, oprobrioso - em última análise: lesa-pátria




Lembram-se daquele episódio deplorável que envolveu uma revista criada especialmente para mostrar imagens muito íntimas de um arquitecto importante da nossa praça? Foi em fins dos anos oitenta, e pelos vistos na época nenhum órgão de informação se queria sujar com essa ignominia. Na altura, até tínhamos vergonha de falar disso. Alguém comentou que tinha visto o artigo, e que se sentia sujo por ter visto o que não devia ver. Muitos anos mais tarde, ouvi uma insinuação de que aquilo não era um mero ataque ao arquitecto, era um aviso a algum poderoso sobre o que lhe podiam fazer a ele. Seria?

Lembram-se do caso Clinton/Lewinsky? Nunca percebi porque é que o Clinton não disse logo à entrada "tenham paciência, mas a minha vida privada não vos diz respeito, e por isso não vou responder a essas perguntas". Podia ter perdido a presidência, mas salvava a sua dignidade e desenhava uma fronteira clara sobre o que se pode exigir a um político. Em vez disso, o mundo inteiro andou a debater publicamente e sem qualquer pudor os detalhes da vida sexual de um homem. Como é possível as pessoas espreitarem as camas alheias com óbvio gozo achando-se simultaneamente bastiões da moral?

Entretanto, o nosso sentido de decência vai sofrendo constantemente novos rombos. Já chegámos aos telefonemas privados (conseguidos por escuta e ao abrigo do segredo de Justiça) transcritos em jornais e divulgados no youtube. E se tivessem revelações bombásticas, que eventualmente justificassem a obrigação jornalística de informar... mas nem isso. Pura coscuvilhice e prazer de enxovalhar as pessoas.

Nos dias que correm, é normal no nosso país fazer impunemente insinuações sobre "saber-se coisas" da vida das pessoas, revelar nas entrelinhas detalhes da vida privada que não deviam ser da conta de ninguém, devassar abertamente a privacidade dos políticos. Serão avisos aos poderosos, ou até já a própria prática da chantagem? E, se o forem: queremos realmente ser cúmplices deste jogo que torna os nossos políticos reféns de coscuvilheiros e chibos indecorosos, ao serviço de sabe-se lá que obscuros interesses?

Tal como fiz na altura do processo Clinton/Lewinsky, não quero saber um único pormenor do que está no livro do José António Saraiva. Os artigos de João Lemos Esteves e de João Pedro Henriques chegam bem para ter uma ideia do nível dos conteúdos, e para querer evitar a todo o custo o contacto com a imundície que vai na cabeça do seu autor.

Não vou ler o livro, e é isto que pensarei das pessoas que o comprarem ou lerem: gente sem sentido de honra nem decência, que tira prazer de espreitar camas alheias, que não se importa de ser cúmplice num enxovalhamento aviltante dos mais altos representantes de Portugal, que se está nas tintas para a necessidade de garantir aos políticos um ambiente público baseado na confiabilidade, no respeito pelos mais elementares direitos humanos, e na decência. Gente que, pelo mero prazer de cuscar a privacidade alheia, participa em processos que podem tornar os nossos políticos reféns de pessoas sem escrúpulos, oferecendo a estas um poder  profundamente antidemocrático.


6 comentários:

Izzie disse...

Soube deste "livro" hoje de manhã e nem queria crer. Agora li o "artigo" desse tal Esteves e ainda estou de boca aberta. Publicar e depois elevar uma fossa séptica a literatura ou crónica imprescindível é algo que nunca pensei ser possível, juro. que asco.

Helena Araújo disse...

E consegue ser ainda pior do que já tinha percebido nos outros dois artigos. Olha aqui o que escreve o Daniel Oliveira no facebook:

José António Saraiva era diretor do Expresso quando fui convidado para lá escrever, já lá vão quase 12 anos. Como nunca entrei em polémica com ele nessa altura, fiz questão de nunca o fazer depois dele sair, apesar de por vezes ter vontade. Até porque nada tenho a apontar-lhe na relação profissional (distante) que mantivemos. Pelo contrário. Não li (e suspeito que não vou ler) o seu novo livro, mas foi-me mostrada uma passagem sobre Miguel Portas e o nascimento do jornal "Já", que acompanhei muito de perto (mais perto era impossível). Saraiva decidiu partilhar com os leitores um diálogo que terá tido com o Miguel, por esses dias. Um dos assuntos que refere tem a ver com Paulo Portas e supostas dificuldades que este viria a ter, por causa da sua vida pessoal, a afirmar-se no CDS. Para além da indecência de divulgar um diálogo com esta sensibilidade quando o Miguel não está cá para o desmentir ou confirmar e quando não há qualquer outra testemunha, usa alguém que morreu para, por essa via, fazer considerações sobre a vida pessoal do seu irmão, que está bem vivo. Considerações que duvido que o Miguel tenha feito com alguém de quem não era amigo próximo e que mesmo que o fizesse nunca permitiria que fossem públicas. É feio divulgar conversas íntimas. É muito feio divulgar conversas íntimas sobre terceiros. É inacreditável fazê-lo quando se usa esses terceiros para divulgar suspostos factos da vida privada de alguém. É nojento fazê-lo quando a pessoa que é usada é familiar da pessoa cuja privacidade é devassada. É abjeto quando a pessoa que é usada já morreu. Não sei se José António Saraiva é uma pessoa maldosa, se é alguém com uma incapacidade estrutural em compreender as regras de comportamento social ou se passou para o lado de lá. Por mim, não esquecerei esta passagem que li. Tolero todas as opiniões, por mais tontas que sejam (e as de José António Saraiva costumam estar para além disso). Mas não tolero quem desrespeita a memória de gente boa (e neste caso um grande amigo meu). Ainda mais para ferir alguém que, estanto a quase todos os níveis tão longe de mim, o Miguel amava incondicionalmente. De uma coisa estou certo: se o Miguel fosse vivo Saraiva nunca teria a coragem de escrever o que escreveu. Se quer dizer qualquer coisa sobre a vida privada de Paulo Portas, que o diga pela sua pena, não se esconda atrás de quem cá não está para se defender. Do que sei em relação ao que está no livro, Saraiva dedica-se, em vários momentos, ao mais rasteiro mexerico sobre o que de mais íntimo há na vida das pessoas. É fá-lo de tal forma que só posso pensar que não está bem. Mas uma coisa ultrapassa tudo o que acharia possível: a notícia de que Passos Coelho apresentará esta coisa. Não pode ser verdade.

Izzie disse...

Foi por essa publicação do DO que percebi cabalmente o tema do livro. Fiquei pasmada, ainda me custa a acreditar que alguém seja capaz de escrever e publicar aquilo. É atroz. E nem é preciso frisar que não acredito que o Miguel Portas fizesse quaisquer confidências sobre o irmão ao autor. E que fizesse: divulgá-lo é um atentado.

Daniel Carrapa disse...

O texto do João Lemos Esteves no Sol é aquilo que o MEC bem denominou como "culambismo". Um figurete menor que sabe-se lá como escreve umas crónicas de opinião medíocres resolve fazer o elogio do patrão. Tudo isso, claro está, é apenas espuma em relação ao que está em causa. O verdadeiro drama é que um sujeito que dirigiu um jornal de referência nacional (goste-se ou não) durante duas décadas seja hoje o mesmo a meter um decisivo prego no caixão da credibilidade da imprensa nacional, redigindo um livro do mais reles tabloidismo que nunca antes fez escola em Portugal. Um nojo.

Lucy disse...

VIVA,VIVA,Helena!

Jaime Santos disse...

Meu caro Daniel, o tabloidismo nunca fez escola em Portugal? O que anda o Correio da Manhã, entre outros, a fazer há anos? Nestas coisas, deixamos chocar o ovo da serpente e quando damos por ela é que nos queixamos...