19 julho 2016

reacções ao ataque no comboio de Würzburg

Em dias como o de hoje vejo com muita clareza porque gosto tanto de viver na Alemanha: o país consegue manter a cabeça fria e o respeito pelos seus valores mesmo perante situações que provocam insegurança e medo como o ataque de ontem.

Os vários jornais que li esta manhã  relatavam o sucedido (um jovem afegão armado de faca e machado atacou um grupo de pessoas; das cinco vítimas, quatro estão hospitalizadas, duas delas em risco de vida; o atacante fugiu do comboio e foi encontrado pela polícia; durante a tentativa de captura a polícia matou-o), diziam que a polícia estava a investigar os seus motivos, e lembravam que há alguns anos houve uma tragédia muito semelhante num comboio - um alemão que durante o interrogatório policial posterior parecia ter problemas mentais.
Noutra notícia, o presidente da Câmara de Würzburg lamentava profundamente esta tragédia, mas recusava-se a fazer especulações sobre o caso, preferindo esperar pelos resultados da investigação policial.

De hora para hora vai-se sabendo um pouco mais - neste momento já se sabe que foi realmente um acto de ódio. Sabe-se que no sábado passado, o atacante soube da morte de um amigo no Afeganistão, e fez uma série de telefonemas para o seu país. Também se sabe que ao entrar no comboio evitou o compartimento onde viu uma mulher que conhecia do centro de acolhimento a refugiados onde viveu algum tempo. E deixou uma carta de despedida para o pai onde dizia "e agora reza por mim, para que me possa vingar nestes infiéis, e vá para o céu".

Grande parte dos comentários que li no facebook do SZ e do Spiegel são moderados e ponderados. De um modo geral as pessoas conseguem distinguir entre muçulmano e terrorista, e perguntam-se o que leva alguém a fazer isto. Também há quem critique a hesitação do Estado em classificar este tipo de actos de violência como terrorismo islâmico, e há quem responda a esta crítica lembrando que certos ataques a centros de refugiados não são imediatamente classificados como actos de terror nazi.

O panorama no facebook do jornal Bild é bem diferente. O post onde mostra o vídeo de anúncio do ataque está cheio de comentários de ódio contra "esses macacos" e a Frau Merkel que "provavelmente vai aproveitar para convidar mais alguns desses para se virem instalar aqui". Há alguns comentários a criticar o próprio Bild, por exibir materiais que alimentam o ódio e o medo, mas de um modo geral o nível é muito baixo.

No noticiário das oito da noite, o primeiro canal de televisão deu seis minutos (dos quinze) a estes acontecimentos, seguido de um noticiário extra, de dez minutos. Falaram muito da situação dos refugiados menores não acompanhados, de como são alvos fáceis para interesses sinistros, e falaram do modo como o Daesh recruta ou seduz jovens para a sua causa com vídeos disponíveis no youtube onde mostram imagens de uma vida agradável num futuro Estado Islâmico. A ministra da Família disse que não se pode poupar esforços nem dinheiro nesta área, e que é preciso dar toda a atenção a estes menores, para evitar que eles sejam alvo de más influências. Em vez de fazerem espectáculo (não mostraram sangue nem feridos, não entrevistaram as vítimas ou as suas famílias), deram imensas informações. Também falaram da fronteira entre amok e terrorismo, e lembraram que declarar automaticamente uma tragédia destas como terrorismo, antes de ter provas, é fazer o jogo do Daesh.

Entretanto já foram publicados vários artigos sobre a linha ténue entre o amok e o terrorismo. Traduzo (resumindo) parte de um deles, do jornal Süddeutsche Zeitung:

Porque é que nos dias de hoje é, por vezes, tão difícil distinguir entre terror e amok?

Em 2014 um homem de 40 anos atropelou grupos de pedestres em Dijon, ferindo 13 pessoas. Como gritava "Allahu Akbar", logo se pôs a hipótese de ser um ataque terrorista.

Quando, na semana passada, Mohamed Lahouajiej Bouhlel atropelou pessoas em Nice, matando 84, também se pensou imediatamente que seria um terrorista.

No entanto, em Dijon chegou-se relativamente depressa à conclusão de que não se tratava de um terrorista, mas de um amok com sérios problemas psíquicos.
[como se dirá esta palavra em português? O site da FNAC diz, a propósito do livro Amok, de Stefan Zweig: "Amok", o título desta novela, é retirado da cultura indonésia e significa «lançar-se furiosamente na batalha».As pessoas afetadas por este estado psíquico têm ataques de fúria cega e procuram aniquilar os que consideram seus inimigos e qualquer pessoa que se interponha no caminho, sem consideração pelo perigo que correm.]
No caso do atentado de Nice, adensam-se os indícios de que, de facto, se tratava de um terrorista.
O que levou a esta dificuldade em distinguir entre um amok e um terrorista foi o facto de o Daesh ter alargado a sua estratégia de luta contra os "infiéis": os seus dirigentes deram-se conta de que, mesmo à distância, é possível transformar os seus simpatizantes em atacantes.

Em 2014 Muhammad al-Adnani apelou aos simpatizantes no Ocidente para matarem "infiéis" por todos os meios à sua disposição. Qualquer pessoa deve "rebentar a cabeça do inimigo com uma pedra, matá-lo com uma faca, atropelá-lo com um carro, atirá-lo de um ponto alto, sufocá-lo ou envenená-lo".

Para além disso, a organização terrorista faz imensa propaganda nas redes sociais. E fá-lo com sucesso, como mostra o grande número de jovens que foram do Ocidente para a Síria, para lutar pelo IS. Para os seus chefes, não importa que a maior parte deles quase não saiba nada sobre o Islão e a ideologia do IS. Basta-lhes que sirvam os interesses do movimento como soldados e terroristas.

Já houve vários ataques terroristas perpetrados por pessoas que se radicalizaram no seu país ocidental e ali agiram em nome do "Estado Islâmico". O cidadão norte-americano Omar Mateen, por exemplo, que em Junho matou 49 pessoas num clube em Orlando, não tinha qualquer ligação directa ao IS. Só durante o próprio ataque fez uma declaração de apoio ao autoproclamado califa do IS. As investigações, depois da sua morte, revelaram que tinha problemas psíquicos, odiava minorias como homossexuais, judeus e latinos, e falava em matá-los.

Seria Mateen um homem doente, que acabou por ver na propaganda dos terroristas islâmicos uma legitimação para transformar o seu ódio em violência mortífera?

Há indícios de que, no Ocidente, há um risco especial de jovens frustrados e com problemas graves, nomeadamente de construção da sua identidade, serem mais receptivos à propaganda do Daesh e de outras organizações de terror. Ao contrário dos terroristas que agem por motivos realmente ideológicos, como até agora os conhecíamos, estes são bem mais semelhantes a amoks que se aproveitam de uma ideologia para justificar os seus actos.

Obviamente, a questão sobre o estado psíquico de um terrorista não se coloca apenas em relação a muçulmanos. O norueguês Anders Behring Breivik, que em  2011 matou 77 pessoas, justificou os seus actos fundamentalmente com motivos políticos. No entanto, tinha uma visão muito distorcida de si próprio e da situação na Europa, como provam as mil páginas do seu "Manifesto". Um primeiro exame revelou uma esquizofrenia paranóide, um segundo negou esse diagnóstico mas concluiu que sofria de perturbações de personalidade. O procurador considerou que havia debilidade mental, mas o tribunal condenou-o por assassínio.

Breivik perpetrou um ataque terrorista e justificou-o com motivos políticos. Mas será que uma pessoa sem problemas psíquicos teria feito o mesmo?



5 comentários:

Ant.º das Neves Castanho disse...

Na mesma linha de raciocínio, Timothy McVeigh, Gavrilo Princip, ou os famosos assassinos de Lincoln e de Kennedy, teriam problemas psíquicos?

E o nosso Prof. Buíça, também teria ele problemas psíquicos? É que também deixou uma carta fantástica à sua pobre mulher...

E, por que não, Anastácio Somoza, Ferdinando Marcos, Nicolau Ceausescu, Hitler, Pinochet, Estaline, Bokassa, Fulgêncio Baptista e o Gen. Videla, entre tantos outros, não teriam também eles graves problemas psíquicos?

Qual então a diferença moral entre um bombista anarquista europeu ocidental do Séc. XIX e um "combatente do estado islâmico" do Séc. XXI?

Ou não será tudo apenas uma questão de "orgulho e preconceito"? Por exemplo o Sir Francis Drake, como o Menahem Begin, não começaram por ser foras-da-Lei - respectivamente pirata e terrorista -, antes de os guindarem a "personagens históricas" de elevada reputação?

Eu não consigo ver grande diferença entre um jovem que mata por ódio em Würzburg ou Bagdad e um outro que mata só por matar na Maratona de Nova Iorque, ou na tal Universidade americana (o jovem de origem chinesa, se não me engano).

Matar pessoas banalizou-se novamente, incrivelmente, como acontece sempre que há guerras. Matar até sem qualquer motivo... Estamos sempre a ver gente a morrer a brincar, em Filmes, em jogos, em telediscos. E pensávamos que isso não tinha mal nenhum. Não terá?

Ainda bem que a Alemanha (o Mundo) não é só a clientela do «Bild» (ou do correio da manha). Mas não sei se isso vai chegar...

Helena Araújo disse...

Não sei responder às primeiras perguntas: não sou psiquiatra, e não conheço a ficha clínica desses rapazes.

Claro que a História é escrita pelos vencedores. Se o IS vencer, o maluco do comboio vai ser um mártir.

Quanto à diferença: para quem morre, não há diferença nenhuma.
Para quem quer evitar estas coisas, é preciso estar atento à história que leva a estes actos. Os "autênticos" terroristas são trabalho da polícia. Os malucos, que no próprio momento do ataque se lembram de que saem melhor no auto-retrato se disserem que são do daesh, esses são um caso para a psiquiatria.
A polícia não tem como prevenir e acompanhar psicoses. Mas - nestes tempos em que o daesh aparece com uma mensagem tão sedutora na internet - é muito importante estar atento a jovens com distúrbios graves, para impedir que eles juntem a sua fome à vontade de comer do daesh, fazendo um suicídio aparatoso. No fundo, é isso: é mais um suicídio aparatoso que um atentado suicida.

Ant.º das Neves Castanho disse...


É isso mesmo, um suicídio aparatoso, só que com "vítimas colaterais" (e só esta linguagem é já ela própria profundamente terrorista...).


Há algo contudo em que eu me recuso a alinhar e é nessa narrativa atual da "guerra contra" o dito estado islâmico.

A linguagem mediática sobre este tema tende a pretender que existe uma organização consciente e poderosa que pretende derrotar a nossa Sociedade, seja na sua vertente religiosa (o Cristianismo e o Judaísmo), seja na sua vertente política (a Democracia), seja na sua vertente cultural (a tolerância, a liberalização dos costumes e a livre criação artística).

Curiosamente, fica um pouco nas "meias-tintas" relativamente às questões de natureza económica - será o estado islâmico "comunista", ou "reaccionário"? -, daí até uma certa incomodidade na elaboração da crítica de raiz marxista a este fenómeno.

Ora eu estou cada vez mais convencido de que o "estado islâmico", ou lá como raio o chamam, não passa daquilo que sempre existiu, embora com formas historicamente mutantes: um bando de piratas!

Não acredito numa "organização" com pensamento próprio elaborado e com objetivos estratégicos, como era por exemplo a OLP, ou o PAIGC (que também eram "terroristas"...).

Não acredito que o auto-proclamado "estado islâmico da Síria e Iraque" (APEISI) tenha como objetivo "derrotar" a América (ridículo!), ou conquistar a Europa ocidental (patético...).

O que nos deveremos interrogar é sobre o porquê de, a um bando de piratas como eram os das Caraíbas (que, por mais que gamassem espanhóis e portugueses, nunca na vida terão sonhaado em tomar Madrid, ou sequer derrotar Lisboa...), se dar importância equivalente à de Estados inimigos, com uma retórica decalcada da dos livros de História, nos capítulos das guerras napoleónicas, ou mundiais, ou mesmo das modernas Coreias, Vietnames e quejandas. Como?

Os piratas do APEISI roubam e assaltam, têm dinheiro para comprar armas, sim (a quem, já agora??), escravizam populações indefesas, recrutam mercenários, pois é, e ainda aliciam desesperados, desorientados, ou psiquicamente afetados em todo o Mundo a perpetrar crimes aparatosos. Por isso são piratas, bandoleiros, perigosos corsários... Mas será que pretendem mesmo vir por aí fora e levar tudo a eito, como o Gengis Khan?

E ao mesmo tempo nós, civilizados e tal, tratamo-los como um País inimigo, falamos deles como se tivessem um regime político (?), uma cultura, um exército, uma História, um Ditador a mandar neles (!). E porquê? Porque na televisão assim no-los descrevem. Mas isto para quê?

Será porque eles são uma peça importante em guerras mais sérias, mas menos mostráveis e discutíveis, porque inconvenientes para os autores deste tipo de retórica?

Enquanto nos entretêm com parangonas sobre o "estado islâmico", o que está a acontecer REALMENTE nos subterrâneos mais esconsos da História? A partir de decisões CONSCIENTES e PREMEDITADAS dos poderosos senhores de Moscovo? De Washington? De Ancara? De... Bruxelas??!

"Pensar" deveria talvez passar a ter a seguinte definição, nos bons Dicionários: verbo intransitivo que significa o oposto de ver televisões mercantis e ler imprensa tablóide...

Jaime Santos disse...

Ainda bem que na Alemanha se está a fazer uma discussão mais ou menos ponderada do problema, porque o Governo Francês pelo seu lado parece de cabeça perdida (a dimensão dos atentados em França também é obviamente muito maior). Eu gostei muito do que a Helena disse aqui atrasado, de que a nossa atitude tem que ser semelhante à dos habitantes de Bagdade, que não se fecham em casa com medo de atentados, eles que correm um risco muito maior do que nós. Seja o que Deus quiser, que origina claro do Insha'Allah... Precisamos de várias coisas. Cabeça fria sem perder o sentido de solidariedade com os refugiados, a esmagadora maioria dos quais são pessoas de bem e vítimas do Daesh, ou de Assad, ou de outro tirano qualquer, e claro de que as nossas forças policiais estejam bem preparadas e bem coordenadas a nível nacional e europeu. E se for necessário intervir militarmente noutros países pois que seja, mas que se faça com parcimónia e sem nenhum entusiasmo, lembrando que o que atualmente acontece também se deve às intervenções anteriores no Iraque, Líbia e Síria, e mais, que se o fizermos, será para continuar a apoiar as populações locais por muitos anos, não haverá cá 'Mission Acomplished' rápida... Finalmente, será necessário investir em políticas sociais e de integração que deem a muitos muçulmanos europeus assim como a outras pessoas, o orgulho de serem (ou de se tornarem) cidadãos dos Países em que habitam. E mesmo assim será necessário contar com atentados perpetrados por loucos furiosos (investir na prevenção da doença mental é capaz de ser uma boa ideia). Tudo isto custa dinheiro (à atenção do Sr. Schaeuble), mas a alternativa a isto é o restabelecimento de fronteiras, o protecionismo, intercâmbio cultural mais reduzido, o que terá igualmente consequências económicas. Era bom que aqueles que beneficiaram da globalização e do processo de integração europeia se lembrassem que manter isto tudo a funcionar pode mesmo ter mais custos do que o que pensavam até agora...

Helena Araújo disse...

Ora aí estão algumas grandes verdades. Entre outras, esta: esquecemo-nos sempre que a esmagadora maioria das vítimas desta loucura islâmica são muçulmanos.