21 julho 2016

"imaginação"

(mais um - prometo que é o último verbete repescado da Enciclopédia que publico aqui) (hoje)


Ontem não escrevi sobre imaginação porque se fosse escrever sobre isso ficava aqui o dia inteiro

- começava pelo tempo em que era capaz de ver mouros nos meninos do infantário que estavam na mesa que nós, cristãos, queríamos conquistar, o tempo em que via o Pai Natal a pôr os presentes junto ao pinheirinho e tinha a certeza que as fadas que moravam no jardim me ajudavam se eu pedisse da forma certa, mencionaria o caminho entre a mercearia do senhor Paulo e a nossa, que eu conseguia encurtar imaginando que estava a ser perseguida por lobos e desatando a correr para salvar a vida, sentindo já o bafo deles no meu pescoço (como é que nunca deixei cair o saco de leite, nessa correria desenfreada, é um dos primeiros enigmas da minha vida), falaria talvez do momento em que acreditei que conseguia ver átomos no ar (eram partículas de pó no quadro de luz de uma porta aberta contra um espaço escuro), não sei se contaria daquelas cenas em que me zangava com os meus pais e imaginava que me aconteciam coisas horríveis e eles se fartavam de chorar, arrependidos de terem sido maus, e quem chorava era eu, baba e ranho cheia de pena deles e de mim, e tantas outras histórias do género, e outras ainda do tipo leiteirinha que tinha uma bilha de leite e se punha a imaginar que com o leite comprava uma galinha e com a galinha uma cabra e com a cabra um porco, etc., e quando já estava a enriquecer deveras tropeçou e partiu a bilha do leite, depois falaria de aprender línguas tirando pelo sentido, esse pas-de-deux entre a imaginação e a lógica, e continuaria até à dúvida se é pelo sonho que vamos, ou pela imaginação, porque suspeito que a vida me corre bem porque é assim que a imagino -

e não tenho tempo para isso.



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