08 março 2016

a ordem natural e eterna das coisas (2)



A propósito do meu post "menino ou menina", o Luís Aguiar-Conraria criticou, em conversa privada, a minha posição, porque se fica com a ideia de que os pais não contribuem nada para a socialização das crianças, quando de facto contribuem, nomeadamente impondo restrições.

Penso que os pais contribuem para a socialização das crianças antes de mais com o exemplo. As imposições, e em particular as regras que os pais não cumprem, de pouco servem. No caso da minha família, é ainda mais complexo, porque criámos os filhos entre várias culturas diferentes: Portugal, Alemanha ocidental, Califórnia, França, ex-RDA, Berlim - com o cristianismo/catolicismo como elemento de base. Antes de lhes impor determinada regra ou obrigação, surgia-me sempre a dúvida: em que país é que isto é uma verdade absoluta? Para que país e sociedade os estou a preparar? Isto que estou a dizer é a minha vontade, quiçá capricho, ou corresponde a uma ordem superior a todos nós?

Ainda hoje lembro o meu choque ao ver amigos portugueses obrigarem a filhinha de dois anos a dar o seu brinquedo favorito à minha, para que aprendesse a partilhar. Para os alemães que conheço, isto seria uma violentação da criança, um gesto de prepotência dos pais. Nos EUA, um miúdo da vizinhança insultou os meus filhos por eles se recusarem a emprestar-lhe a bicicleta. Na Alemanha, nenhum rapazinho se atreveria a exigir que outra criança lhe emprestasse um brinquedo. Uma conhecida nossa, americana, explicou-me que os meus filhos estavam certos na sua recusa - mas não sei se, nesse julgamento, teve algum papel o facto de o outro miúdo ter pele escura. Na Alemanha, o corpo de uma criança é só dela. Em Portugal, as crianças são "objectos de palpar" - que o diga a filha dos meus amigos, loiríssima, que numa romaria minhota teve um ataque de nervos porque toda a gente que passava por ela lhe tocava o cabelo. Na Alemanha, um menino de unhas pintadas ou a passear uma boneca num carrinho não choca, mas em Portugal já se arrisca a ser gozado. Crianças a dar beijinhos umas às outras num infantário português é algo normalíssimo, no infantário californiano dos meus filhos era uma perversão terminantemente proibida. A minha filha podia andar nua nas praias portuguesas ou nos lagos alemães, mas na Califórnia tinha de ser muito cuidadosa para ninguém lhe ver as cuecas debaixo da saia. Ah, a Califórnia... por causa dos seus calções de banho europeus, os nossos dois alemães - o pai e o filho de 3 anos - passavam por gays. Podia ficar aqui horas a dar exemplos de diferenças, mas termino já, com uma história muito curiosa que me aconteceu em Weimar: na mesma semana, ouvi o padre dizer às crianças da catequese que nunca-nunca-nunca se deve contar aos adultos o que as outras crianças fizeram, e a professora dizer aos alunos que se deve contar sempre tudo-tudo-tudo. Uma dúzia de anos depois da queda do muro, o padre mantinha os reflexos de defesa contra a perseguição religiosa, e a professora defendia o Estado omnipotente e omnisciente. "Entendam-se!", suspirava eu. Como é que posso dar coordenadas aos meus filhos, se nem sequer as pessoas desta aldeiazita de sessenta mil habitantes estão de acordo sobre o que é correcto e errado?

Atravessei a infância dos meus filhos como um peixe que não sabe se é de água doce, ou de água salgada, ou anfíbio, ou sequer peixe. Muitas vezes disse-lhes que não tinha resposta, e procurámos juntos uma solução que nos parecesse mais adequada àquele caso. À falta de verdades absolutas para tudo e nada, os miúdos desenvolveram a capacidade de observar as situações e os contextos, e de decidir no respeito por si próprios e pelos outros. Se os tivesse criado no meu microclima português, talvez os tivesse educado bem para viver em Portugal. Assim, treinaram a flexibilidade, a capacidade de análise e a auto-estima que lhes permitem adaptar-se facilmente à vida em países diferentes. Tanto melhor, uma vez que hoje em dia ninguém sabe em que país ou até continente os seus filhos conseguirão arranjar trabalho.

O resultado desta educação interactiva? Dois exemplos: aos cinco anos, o rapazinho sabia melhor que eu o que teria feito no tempo dos nazis ("perguntava-lhes porque é que fazem essas maldades") e, por volta dos dez anos, a miúda reagiu à minha tentativa de invocar a pressão social para lhe impor determinado comportamento, dizendo-me: "deixa que isso seja o meu problema, sim?"


[Na foto: no 4º aniversário do miúdo, em San Francisco, em vez do bowling ou do palhaço que faz bonecos de balões, como é uso na terra, optámos por um torneio medieval com estandartes e armaduras feitos pelas crianças. Os pequenos americanos adoraram.]


2 comentários:

jj.amarante disse...

Ficou uma família do mundo ocidental, não me tinha apercebido da dificuldade de educar crianças com essas variações de contexto. Como casal luso-alemão já teriam de qualquer forma algumas dificuldades extra, na conciliação de alguns valores distintos.
Fiquei a pensar que se tivessem vivido na Índia ou na China corriam o risco de simplesmente educar os filhos nos valores ocidentais, isolando-os do contexto. E fico a pensar que não me fica bem não ter pensado em África. Curioso que só agora pensei em países predominantemente muçulmanos.
E caso seja possível uma resposta sem entrar na vossa privacidade, porque viveram em tanto sítio?

Helena Araújo disse...

A educação depende também da nossa capacidade, como pais, de entender a cultura na qual estamos a viver. Se fosse na China, provavelmente não entenderíamos nada, e por isso pouco aprenderíamos dessa experiência.
Sobre as nossas mudanças: quando me perguntam isso, dá-me vontade de dizer que somos assaltantes de bancos, temos de mudar frequentemente de pouso. Mas não é verdade. É devido ao trabalho do meu marido, e também a sermos aventureiros. Gostei muito de viver em todos esses sítios, e de neles aprender tantas coisas novas.