30 janeiro 2016

será que alguém em Portugal faz ideia do pandemónio que por aqui vai com os refugiados?


Tenho andado a conversar com algumas pessoas no facebook sobre a retórica usada para criticar as medidas de alguns governos para tentarem reduzir o fluxo de refugiados para o seu país, e começa a ser bastante evidente que as pessoas desconhecem partes importantes da realidade. Aqui deixo alguns apontamentos sobre mais alguns lados desta questão, a partir do que observo aqui em Berlim.

Todos os dias chegam à capital alemã centenas de refugiados. Os serviços estatais responsáveis pelos refugiados já estavam a trabalhar no seu limite antes de ter começado esta onda imparável de pessoas em terrível estado de necessidade. Centenas de pessoas diariamente, que é preciso registar, que é preciso controlar cuidadosamente (depois do 13 de Novembro em Paris foi imperativo aumentar as medidas de segurança; depois de Colónia acresceram as preocupações de identificar potenciais delinquentes misturados com o grupo), para as quais é preciso arranjar alojamento, comida, cuidados médicos (especiais e acrescidos para quem fez milhares de quilómetros em terríveis condições), e apoio psicológico (muitos estão profundamente traumatizados). É preciso arranjar tradutores de árabe.

Há um batalhão de voluntários a ajudar imenso. Alguns envolvem-se em disputas com os funcionários, há azedume e crítica de parte a parte. Os media dão uma e outra vez notícias de situações de grande desumanidade, por falta de organização dos serviços. As queixas nos tribunais multiplicam-se, e são sempre casos de muita urgência (geralmente pessoas que esperam semanas e meses para se registarem, porque só depois disso recebem ajuda do Estado), o que significa que se atrasam ainda mais os casos de alemães à espera de uma decisão sobre apoios da Segurança Social.

Esta semana um voluntário inventou a morte de um refugiado de 24 anos em Berlim. As redes sociais incendiaram-se em desabafos muito emocionais e em críticas duríssimas aos serviços ("quantos mais terão de morrer até eles começarem a fazer o que devem?", "mais valia acabar com o LaGeSo!"), até que se descobriu que era tudo mentira. Um ministro do governo regional berlinense criticou a chefe desse grupo de voluntários, e esta respondeu que se está nas tintas para a opinião do ministro.

Na semana passada os media russos divulgaram o caso de uma menina russa de 13 anos, vítima de rapto e violação colectiva por refugiados em Berlim. Um escândalo, acusações gravíssimas de a polícia estar a encobrir o caso para proteger a fama dos refugiados - e afinal tinha sido tudo invenção. Possivelmente haverá um grupo de extrema-direita por trás deste incidente, com o intuito de aumentar o medo e o sentimento de insegurança. E não é caso único. Multiplicam-se as queixas de violações cometidas pelos refugiados, as redes sociais agitam-se (acusando os media de serem mentirosos, porque ocultam estas notícias assustadoras) e no fim a polícia descobre que muitos desses casos são invenção. A polícia queixa-se: enquanto anda a investigar mentiras, perde tempo que era muito necessário para fazer o seu trabalho.

Os refugiados continuam a chegar, e são alojados em sítios inacreditáveis. Muitos deles escapam aos dormitórios colectivos e são acolhidos por famílias, o que deixa os apartamentos sobrelotados, os vizinhos e os senhorios inseguros e desconfiados. Quando pensámos alugar o apartamentozinho do Matthias a um casal de refugiados, ouvimos muita gente dizer: "cuidado, não se metam nisso, ao fim de uma semana têm lá dez pessoas!"

Fala-se em cancelar eventos importantes para dar lugar aos refugiados. Ou então leva-se mil refugiados de um armazém para outro ainda pior, para não ter de cancelar uma feira internacional.

Há bandos mafiosos árabes a ganhar muito com a situação, e a envolver refugiados numa rede da qual dificilmente se poderão libertar. Há casos de refugiados que vendem o cartão que recebem ao entrar em Berlim, para terem acesso a comida e aos transportes públicos, e vão pedir um novo. Para evitar este tipo de burla, dá-se uma pulseira às pessoas, como nos hotéis "all inclusive". O que cria um certo mal-estar. Pensa-se numa nova solução - cartões com um chip e a fotografia do portador. Entretanto os refugiados continuam a chegar às centenas, diariamente. Alguns imigrantes há muito instalados, e que ajudam a traduzir e a organizar, tentam usar esse poder de "interface" para instalar na sua área de influência uma certa ordem islâmica. O que tem como consequência, entre outros, haver refugiados cristãos que escondem a todo o custo a sua religião, com medo de sofrerem represálias dos outros. Isto passa-se no coração de Berlim.

Os media tentam dar uma perspectiva equilibrada da realidade, e evitar ao máximo - sem prejuízo dos seus deveres de informação - alimentar a xenofobia, mas são acusados de serem parciais e até de mentirem. Confesso que me incomoda que só mostrem imagens de crianças e famílias para ilustrar notícias sobre os refugiados, quando todos sabemos que a maior parte dos refugiados são homens jovens. Muitas pessoas sentem-se mais que incomodadas - sentem-se amordaçadas, obrigadas a engolir os seus medos para não ficarem mal na fotografia. Na intimidade das famílias e dos amigos multiplicam-se os desabafos e os boatos: os professores que se sentem incapazes de disciplinar adolescentes que se recusam a ficar sossegados a trabalhar como os outros, ou que não respeitam a professora por ela ser uma mulher; os casos de abuso sexual de que nenhum jornal quer falar; os refugiados que defecam nos jardins; os espertalhões que se portam como se tudo lhes fosse devido; etc.
Haverá com certeza entre um milhão de refugiados alguns que acham normal defecar num jardim, alguns adolescentes (traumatizados?) que se portam mal na sala de aula, alguns espertalhões que acham que podem tudo porque "foram convidados pela Frau Merkel". Mas no espaço reservado das casas e das mesas de café estes casos desenham o retrato robot do refugiado, e tudo o que os media possam fazer para o corrigir reforça a ideia de imprensa manipuladora e parcial.

Entretanto, as ruas da Berlim estão cada vez mais esburacadas, e em inúmeras escolas não há aulas de ginástica, porque os ginásios estão a servir de camaratas. Para dar apenas dois exemplos de problemas práticos. Isto, em Berlim - que nem é a cidade em situação mais difícil.

Noutras cidades já há grupos de cidadãos a fazer patrulhas nas ruas, porque sentem que a polícia é incapaz de responder a todas as necessidades. E há localidades onde de repente passou a haver mais refugiados que alemães.

O Estado de Direito está a rebentar pelas costuras, e os governos tentam responder adequadamente para que o país continue a funcionar em normalidade democrática. Entretanto a Áustria tenta ser apenas um corredor, a Alemanha sente-se aliviada por cada refugiado que resolve continuar caminho, a Dinamarca espera que eles sigam para a Suécia, a Suécia devolve-os à Dinamarca e insiste que é preciso respeitar Dublin.

O sentimento geral é de que estamos perante uma nova vaga de "invasões dos bárbaros" (em alemão diz-se Völkerwanderung, migração de povos - não tem o sentido pejorativo e ameaçador do português). Os alemães vêem o estado de necessidade das pessoas que aqui chegam e sentem que têm de ajudar, mas também estão apreensivos sobre o que isto possa significar de mudança nos hábitos e no nível de vida (nomeadamente as mulheres terem medo de andar na rua, ou uma redução drástica dos apoios sociais, nomeadamente os cuidados de saúde, devido a este enorme acréscimo de despesas). Apesar disso, continua a haver uma multidão de voluntários que sabem focar-se no essencial: ajudar estas pessoas, que precisam tanto. O país olha para elas com gratidão. Em 2015 contaram-se cerca de 800 ataques contra os refugiados. Ninguém contou os gestos de acolhimento, mas são milhões.

Amanhã, dia 31 de Janeiro, mais de 80 instituições culturais da cidade abrem as portas aos voluntários, oferecendo gratuitamente a entrada em museus e exposições, visitas guiadas, peças de teatro e concertos para os que ajudaram a acolher 70.000 refugiados em 2015. Berlin sagt Danke!
E na segunda-feira chegarão mais autocarros. E na terça, e na quarta, ...
Ninguém sabe quantos milhões entrarão na Alemanha em 2016.


13 comentários:

jpt disse...

obrigado pelo texto

IsabelPS disse...

Gostei muito do seu texto. É a coisa mais completa que li até agora sobre esta situação complexa que não pode ter senão uma leitura complexa.

Gostei especialmente de ver que as pulseiras tiveram um tratamento diferente agora: depois de ler a sua entrada anterior confesso que me interroguei "Mas então o que é que propõem para identificar as pessoas? A palavra delas?" Mais ainda depois de ver algures na internet uma fotografia duma senhora de idade a receber a visita do gato no seu último dia de vida no hospital, com 3 pulseiras de plástico no braço... Chocante? Sim. Um mal menor? Provavelmente.

E a resposta à sua pergunta retórica em título é: não. Tenho lido reflexões muito profundas de jornalistas nada parvos sobre a forma como os valores da "Europa" não resistiram nem uns meses ao medo; em lado nenhum esta pergunta muito simples: e nós, em Portugal, como reagiríamos colectivamente?

Folgo muito em saber que os berlinenses estão a reagir como pessoas decentes: a fazer o melhor que podem. Tenha um bom domingo :-)

margarida disse...

isto já eu previa sem ser informada. se vierem mais para Portugal será a mesma anarquia não há sistema que aguente.

margarida disse...

ainda não tinha lido este blogger, mas já previa que fosse assim. é impossivel receber tanta gente nem na organizada alemanha corre bem, se vierem mais para Portugal acontece o mesmo. são pessoas estranhas co0m religioes muito activas e habitos muito diferentes aqui será muito pior creiam. não é xenofobia, não direita é a realidade. lembrem-se da historia das grandes invasões que destruira o imperio Romano do Ocidente."Ai dos vencidos". frase do "barbaro" em ROMA.

Helena disse...

muito obrigada pela informação desta forma isenta e humana.

João Miguel Vaz disse...

Obrigado pelo testemunho.

Helena Araújo disse...

Margarida,
parece-me que fala a partir de uma posição de medo do desconhecido.
Eu mostrei que isto está a ser difícil, mas não disse - e não penso - que é uma tarefa impossível, e que é preciso fechar as fronteiras da Europa. De momento a Alemanha vê-se aflita para dar a quem chega o mínimo de condições de vida. Daqui a uns tempos, quando as coisas acalmarem um pouco, vai haver a possibilidade de se reorganizar para integrar realmente estas pessoas. Aulas de alemão, de informação sobre esta sociedade e de formação profissional, por exemplo.
Quando abriu as fronteiras aos refugiados, a Angela Merkel disse que a integração deles é um desígnio nacional para as próximas décadas. Ninguém ignora que isto não vai ser fácil. Mas há muitos alemães que acreditam que é um desafio que saberão vencer.
É impossível fechar as fronteiras. Nem vale a pena perder tempo a pensar nessa possibilidade, porque é irrealista. Mais vale arregaçar as mangas, e começar a trabalhar.

Maria Streibhardt disse...

Excelente texto Helena. O mesmo se passa aqui na NRW. Sou voluntária da Caritas num dos centros de acolhimento que temos em Münster. Temos poucas familias e/ou mulheres e crianças em relação aos homens jovens, que são imensos. Fazer o registo e identificação tem sido quase um pesadelo, ou porque não querem colaborar ou porque dizem ter perdido os documentos na viagem, etc... No final, depois de muita pesquisa a Policia descobre que muitos deles tem mais do que uma identidade ou documentos falsos, essa grande maioria nem sequer vem de países em guerra... Enfim, temos aqui "uma faca de 2 gumes", um desafio que não vai ser fácil nem rápido mas que, acredito a Alemanha vai conseguir vencer.
Vou levar o seu texto que, acho de leitura obrigatória para quem está lá fora e fala sem ter muita noção do que se passa aqui...

Gonçalves disse...

http://www.sapo.pt/noticias/cerca-de-24-da-populacao-mocambicana-vive-em-_561ff4355183b0ee1da9d761

preocupada disse...

Obrigada por nos deixar uma perspectiva plural do que se passa num assunto que é tudo menos preto e branco.
Li-a no Observador, e gostei imenso.

Suzette Morais disse...

Helena gostei muito do seu texto.

João Miguel Vaz disse...

Em Portugal ninguém faz ideia do que é receber refugiados. Desde 1975 que não temos nada que se compare ao que se passa na Alemanha. E mesmo nessa altura, os que regressavam eram portugueses.

pilar kruss disse...

Gostei imenso do texto, obrigada.