11 setembro 2015

merecer a sorte que temos




Verdade seja dita, nem todos os judeus que conseguiram escapar ao Holocausto eram pessoas maravilhosas e impecáveis. É preciso ser muito ingénuo, de uma ingenuidade a tocar a idiotia, para acreditar que uma pessoa que é vítima de algo só pode ser um everybody's darling.

Bem sei que os Evangelhos nos exortam a ver Jesus Cristo nos mais pobres mas, caramba, isso não é para ler literalmente. Os barcos e os comboios de refugiados não estão apinhados de clones de Jesus.

Com certeza que estas pessoas trazem os seus problemas, os seus hábitos culturais e os seus traumas. Vai ser necessário um longo trabalho de adaptação mútua e diálogo intercultural. Mas recusar ajudá-los por medo e por comodismo é algo que combina mal com este continente rico e baseado em ideais humanistas no qual nos calhou em sorte nascer.

Saibamos merecer essa sorte.
Mais ainda: saibamos trabalhar para que o nosso continente seja cada vez mais um lugar onde os ideais humanistas se misturam à História que construímos dia a dia.

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A propósito, fui ao arquivo deste blogue buscar um texto que traduzi do diário de Ruth Andreas-Friedrich, uma jornalista que pertencia a um grupo de resistência em Berlim. Em 1939 esse grupo transportava para fora do país pertences dos judeus que fugiam sem poderem levar nada com eles. Esta página do seu diário refere uma dessas viagens ("Amanhã chegaremos a Paris. Finalmente poder falar sem ser em surdina. Sem ter de usar metáforas ou olhar em volta com medo.").

Paris, Domingo 16.07.1939

Durante todo o dia o vaivém no nosso quarto não pára. Amigos, conhecidos, amigos de amigos, conhecidos de conhecidos. Todos querem saber o que se passa na Alemanha, trocar impressões, receber saudações, aliviar a alma. Nem todos continuam como eram antes desta breve, ou longa, separação. É-me difícil falar com alguns deles. Porque é que começaram a pensar que somos simpatizantes dos nazis? Apenas porque regressaremos à Alemanha? Porque dizem agora "nós, judeus" quando antes diziam "nós, amigos"? Não éramos amigos quando os ajudámos a fugir do país? Hitler inventou a separação das raças, e eles próprios reforçam esse discurso quando se reconhecem naquela diferença. Algumas conversas deixam-me muito desanimada. Mas Andrik chama-me à razão. 
- Não caias também tu no erro de pensar que todos os judeus são anjinhos. Nem todos aqueles que os nazis transformaram em seus inimigos são amigos nossos. Um ou outro senhor Abraão, Isaac ou Jacob seria alegremente nazi, se o deixassem. 
- Mas, os emigrantes... 
- Não há "os" emigrantes. Há o amigo A que emigrou, a amiga B que emigrou. O problema central está nas generalizações. Todos os polacos são assim. Todos os franceses são assado. Todos os judeus têm de ser isto e aquilo. Avaliação do carácter segundo um esquema simplista, centenas de milhares numa única gaveta. Se não nos libertarmos desse hábito, nunca chegaremos a bom porto. Nem no que diz respeito ao diálogo entre os humanos, nem à tolerância. 
Vejo-me obrigada a dar-lhe razão. E já não exijo que "todos" os emigrantes partilhem os nossos pontos de vista.


2 comentários:

Fuschia disse...

"Um ou outro senhor Abraão, Isaac ou Jacob seria alegremente nazi, se o deixassem. "
Sim e quando não é um anjinho então é o oposto. Talvez o problema das generalizações seja esse, não permite meios-termos, que é onde se encontra felizmente a maioria.

Helena Araújo disse...

Sem dúvida.
Mas é melhor eu não falar muito alto. Também tenho os meus momentos de confundir a árvore com a floresta.