25 setembro 2015

a RTP a servir antigermanismo em horário nobre

A notícia já tem dois dias. Ontem comentei lá, mas hoje, curiosamente, todos os comentários tinham desaparecido. (Deixo-os de novo, no fim do post, para o caso de alguém os ter apagado sem querer, e os querer recuperar.)



Alemanha aloja refugiados em antigos campos de concentração
Mundo








Podem ver o filme seguindo o link acima.

A peça tem dois minutos e trinta e oito segundos. O primeiro minuto é para relatar os horrores que os refugiados passam para chegar à Alemanha. O tempo restante não é para contar como é que a Alemanha faz para alojar várias centenas de milhares de refugiados num ano só. Em vez disso, manipula imagens para tornar escandalosa uma notícia sem grande importância sobre o alojamento de 50 pessoas. Começa por contar que os refugiados preferem que os filhos fiquem com eles num baldio, à chuva e ao frio durante toda a noite, a aceitar serem separados das crianças (...onde é que eu já vi isto, uma cena de separarem os homens das mulheres e das crianças à saída de um comboio?) e passa imediatamente para imagens das torres de vigia de um campo de concentração nazi. Mais óbvio, é difícil. E é muito triste que se use a tragédia dos refugiados para produzir esta peça que reforça os sentimentos de antigermanismo.

Não me pagam para isto, e não sou eu quem usa o título de jornalista, mas aqui vai alguma informação sobre este escândalo de estarem a meter "muitos refugiados num dos símbolos dos dias mais negros da Europa".

- O campo de concentração de Dachau tinha a área dos prisioneiros (que é hoje um memorial e centro de informação), a área dos SS, que era assumidamente uma terrível escola de crueldade (depois da guerra foi ocupada pelos soldados americanos, e desde 1972 está a ser usada por um corpo de Polícia bávaro, a Bereitschaftspolizei), e o Kräutergarten, uma exploração agrícola experimental, com alguns edifícios administrativos e de estufas. O trabalho no campo era muito duro e feito sem máquinas, em permanente sujeição ao sadismo e à prepotência dos SS. Dentro dos edifícios, as condições de trabalho eram menos brutais.
Em Dachau fizeram-se experiências médicas tão terríveis quanto diletantes, que provocaram a morte de centenas de prisioneiros em condições de enorme sofrimento. Mas a principal causa do elevado número de mortes naquele campo foram as epidemias que alastravam entre os prisioneiros, vivendo sem condições mínimas de higiene e saúde, e extremamente enfraquecidos pela má alimentação e o esgotamento físico.

- A seguir à guerra, a exploração agrícola continuou a funcionar até 1949, ano em que foi fechada por não ser rentável. A cidade de Dachau comprou os terrenos em 1957, e construiu neles uma zona industrial. Os antigos edifícios ligados à exploração agrícola, que ficam na fronteira da cidade, para lá da zona industrial, foram deixados ao abandono ou utilizados para outros fins. Na altura, ninguém pensou em fazer também ali um memorial. Os pavilhões do instituto de ensino e investigação foram entregues a uma empresa que os modificou imenso, e os edifícios administrativos foram aproveitados para alojar pessoas sem-abrigo. Em 2013 a autarquia decidiu fazer obras nesses edifícios para os aumentar, de modo a poder alojar os refugiados cujo pedido para ficar na Alemanha tinha sido aprovado, e que por esse motivo tinham de sair do centro de refugiados que ainda estão à espera de regularizar a sua situação, mas não conseguiam encontrar ninguém disposto a alugar-lhes uma casa.
(para mais informações: aqui, em alemão)

- Foi nesse edifício (já usado para outras pessoas sem-abrigo) que alojaram cerca de 50 refugiados com autorização para viver na Alemanha. Não encontrei nenhuma notícia nos jornais alemães informando que se trata dos refugiados que estão a chegar agora. Pergunto-me se esta notícia da RTP confundiu refugiados que já têm autorização de residência na Alemanha com os novos refugiados sírios, ou se confundiu Dachau com uma das suas 160 extensões, por exemplo com um campo de trabalho na região de Augsburg, onde durante uns tempos se pôs a hipótese de usar esse tipo de instalações, ideia que foi posta de parte na sequência de um aceso debate.

- O processo de recuperação da área e dos edifícios abandonados da exploração agrícola de Dachau, para fazer um memorial, é muito recente. Durante décadas estiveram votados ao abandono, e só há poucos anos é que se começou a lembrar a importância daquele lugar para o trabalho da memória histórica. Como de costume faltam os meios financeiros, e há o problema premente de os edifícios serem necessários para alojar pessoas em situação de necessidade.

- Do que vou vendo sobre os memoriais dos campos de concentração, dou-me conta de que a zona dos prisioneiros é intocável, mas as zonas dos serviços de segurança e administração podem ser destinadas a outros usos. Nas casernas dos SS em Buchenwald, por exemplo, há agora uma espécie de albergue da juventude para quem queira ficar uns dias a estudar o campo. Espero que a RTP não faça nova peça noticiosa alarmando-nos para o facto de no campo de concentração de Buchenwald estarem "retidos jovens de todas as nacionalidades" durante "longos períodos"! Ou de terem transformado o campo de concentração num hotel!

- A região de Dachau, que tem cerca de 130 mil habitantes, está a contar receber este ano entre 1800 e 1900 refugiados. (Quantos refugiados é que Portugal vai receber ao todo, este ano?)


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Os comentários, que desapareceram misteriosamente da página da RTP, eram estes:

Helena Araújo • há um dia
Qual é a intenção desta notícia? Com que objectivo escolheram este título? Porque é que escolheram estas imagens, que associamos ao horror nazi, em vez de filmarem os edifícios concretos onde alojaram alguns refugiados (que, diga-se de passagem, se sentem muito melhor ali que nas tendas ou nos pavilhões desportivos onde vivem centenas de pessoas sem a menor privacidade)?
Só em 2015, a Alemanha terá de acolher entre oitocentos mil e um milhão de refugiados. As autarquias estão a trabalhar no absoluto limite das capacidades e forças para receber essas pessoas. As imagens de centenas de pessoas a viver juntas e sem qualquer privacidade em pavilhões desportivos são de partir o coração. Outras há que vivem em tendas - e os dias já começaram a arrefecer. Onde alojar todas estas pessoas?
São estes os factos: num edifício ligado ao campo de concentração de Dachau, que já era morada de pessoas sem-abrigo e que queriam transformar num centro internacional de estudos, foram instalados cerca de 50 refugiados (note-se que este mês já houve alturas em que chegavam diariamente 10.000 pessoas a Munique), enquanto se tenta arranjar uma casa decente para eles. Os factos são esses, mas a RTP produz uma sequência de imagens que dá a sensação que os refugiados vêm aos milhares directamente da Síria para os campos do terror nazi. Tenham vergonha!

Ana ->  Helena Araújo • há um dia
E o campo já acolheu refugiados alemães... se fossem ao site do campo de concentração tem lá um link onde explicam isso! Também não entendo porque é que em entrevista à sra. do Museu não mencionaram isso... Mais uma vez manipula-se as pessoas sem informação para o bem e para o mal...
Ricardo Martins -> Helena Araújo • há um dia
O objectivo é informar. Não se vai mascarar a realidade para ficar bem. Esta é a realidade, esta é a noticia.

Helena Araújo -> Ricardo Martins • há um dia
Ricardo Martins, se o objectivo fosse informar, mostravam imagens do edifício onde estão alojados 50 refugiados, em vez de pôr imagens de uma torre nazi e uma cerca eléctrica e sobrepor imagens actuais e imagens de arquivo que nos fazem imediatamente pensar nos transportes para Auschwitz. Se o objectivo fosse informar, entrevistavam esses refugiados para saber o que pensam do facto de estarem num edifício ligado ao campo de Dachau, e davam a palavra à autarquia para explicar o motivo daquela decisão. Se o objectivo fosse informar, o título era "Alemanha com dificuldades graves para alojar os refugiados que estão a chegar em grande número".
(E, já agora, aprendiam a pronunciar "Dachau" correctamente. Mas isso é mesmo só um detalhe.)

André Capela -> Helena Araújo • há 21 horas
O sr jornalista explicou bem, as imagens são as verdadeiras como poderá confirmar pelo testemunho da sra alemã.... E pronunciaremos direito Dachau quando eles souberem dizer Lisboa por ex...

Alexandra Patricia -> Helena Araújo • há 15 horas
Mas o incrível é que quando instalaram chuveiros refrescantes para os visitantes em Auschwitz, numa semana de intenso calor, toda a gente reclamou e disse sentir-se em choque porque relembrava uma era de horror que marcou o mundo... e agora não lembra?

− HC • há um dia
Muito bem comentado pela Helena e Ana, parabéns, por causa desses comentários já nem necessito de dar a minha achega para corrigir esta extremamente tendenciosa notícia.

Ricardo Martins • há um dia
E achava eu que o cúmulo do humor negro era o Aeroporto Francisco Sá Carneiro.


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Para o caso de o filme também vir a ser inadvertidamente apagado, deixo aqui um resumo. Diz que é uma peça jornalística...


0'00 - Barco de refugiados no Mediterrâneo. Refugiado conta os horrores que tem passado. Voz off fala sobre o naufrágio do barco onde ele ia.
0'40 - O relato continua. Os refugiados chegam à Croácia. Um refugiado diz que quer encontrar paz, liberdade, direitos humanos, etc.
0'58 - Voz off: "esperam por respeito e paz, mas não esperavam pela reacção húngara" [imagens do muro que está a ser construído na fronteira de Hungria] (...) "O percurso ainda se faz por lá, mas todos correm, mesmo exaustos, quando sentem que estão a chegar à Áustria.
1'19 - "São melhor recebidos, mas já sentem o fim do Verão [imagens da multidão de refugiados à chuva num descampado]. Um austríaco diz que tentam levar as crianças para um sítio abrigado, mas os pais não se querem separar dos filhos.
1'44 - [imagens de uma torre de um campo de concentração nazi] Voz off: "Enquanto aguardam pelos processos de asilo, há muitos refugiados que estão a ser colocados num dos símbolos dos dias mais negros da Europa: Dachau, o primeiro campo de concentração alemão. [imagem de uma criança a correr para dentro de um edifício antigo]
1'55 - Entrevista à directora do memorial de Dachau: "Os edifícios pertenciam à antiga plantação, ao jardim das ervas aromáticas, que era um dos piores locais de trabalho forçado no campo de concentração de Dachau, onde os judeus e os prisioneiros religiosos trabalhavam para tornar o solo arável, e onde plantavam ervas medicinais."
2'19 - Voz off: "Era a zona mais temida do campo onde morreram mais de 41 mil pessoas." [fotografías históricas das barracas e de prisioneiros a serem torturados com o "Pfahlhängen"; a seguir um filme antigo de uma multidão em marcha carregando os seus pertences, imediatamente seguido da mesma cena com refugiados actuais, que estão a sair de um comboio para um descampado] "O peso histórico local causou controvérsia, mas faz parte dos problemas que a Alemanha enfrenta com a chegada de centenas de milhares de refugiados. Tensões e fantasmas europeus num continente longe de perceber como pode resolver esta crise."


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