04 setembro 2015

a linguagem estética que vende

Ando há dois dias sem saber como explicar este sentimento de desconforto perante a perfeição das imagens da criança refugiada que morreu no mar.

É que parece publicidade. Até as cores: vermelho, azul, branco. Não fosse a posição da criança, e pareceria um anúncio de roupa de uma conhecida marca americana. Suspeito que, se a criança estivesse vestida com cores mais folclóricas (imaginem: castanho e bege, por exemplo, e roupas com ar de fora de moda), o impacto em nós não era o mesmo. Porque o que não nos falta é imagens das tragédias horrorosas que acontecem no Mediterrâneo, ou relatos de outras tragédias, como a do camião onde morreram sufocadas dezenas de pessoas. Mas, aparentemente, é esta imagem de um menino de pele branca, vestido de vermelho e azul, que "funciona".

Há vinte anos, a Benetton usava a estética da tragédia para publicitar a sua roupa (lembram-se do barco apinhado de albaneses?). Hoje, precisamos da estética dos anúncios para publicitar a tragédia.

Não quero com isto criticar a campanha em curso - especialmente se tiver efeitos positivos no despertar da nossa solidariedade. Mas confesso que me custa muito que seja preciso chegar a este ponto: escolher, de entre as milhentas imagens das tragédias, as que melhor traduzem a linguagem estética que vende.

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Um pouco a propósito, transcrevo um texto da Fernanda Câncio:

FERNANDA CÂNCIO

Os nossos sentimentos

por FERNANDA CÂNCIOHoje

Se estas poderosas imagens de uma criança síria morta dada à costa não mudarem a atitude da Europa para com os refugiados, o que será preciso?" A pergunta é do jornal britânico The Independent, ontem. A foto é a do menino de T-shirt encarnada e calções escuros, de borco na praia. Olhos fechados, tranquilo como se dormisse: assim são, horrivelmente tranquilas, as fotos de que se encheu o Facebook nos últimos dias, à mistura com tiradas sobre "os políticos" e "a Europa" e "nós", raiva, lágrimas, juras, poemas, emoticons ou o silêncio de quem não encontra o que dizer. Crianças que flutuam num mar de verão, para sempre alheadas de todas as urgências, pavores, fomes, guerras, ódios, fronteiras.
O menino-símbolo tem direito a nome nos jornais: Aylan, 3 anos, sírio, a rir numa foto com o irmão Ghalib, de 5. Também Ghalib, informam--nos, como a mãe dos dois, morreu. Ainda no The Independent, um político trabalhista diz-nos: "Ninguém pode deixar de ser tocado por esta imagem de partir o coração."
Imagens. Não vimos as dos refugiados que morreram sufocados num camião - seriam demasiado terríveis para mostrar na TV e no FB, como o são as das crianças degoladas no último ano pelas hordas do "Estado Islâmico". Queremos os mortos da nossa indignação limpinhos, sem sangue, sem putrefação, para podermos partilhá-los sem pudor. Mas quantos afogados nas costas da Europa vimos nos últimos dez anos? Porque é que Aylan é diferente?
É a gota de água, dir-se-á - passe a ironia obscena de o dizer sobre um menino afogado. Ou, com menos lirismo: porque Aylan, com as suas roupinhas tão ocidentais e a sua pele tão branca, parece tanto uma criança "nossa" que não conseguimos remetê-lo para as inevitabilidades de horror que estamos dispostos a aceitar, sem sequer pensar nisso, naqueles lugares e gentes que entregámos à barbárie.
Seja lá por que for, de repente queremos salvar os Aylans, achamos insuportável que possam morrer assim a caminho de nós, no nosso caminho. De repente Aylan é problema nosso, uma criança nossa como não sentimos e continuaremos a não sentir todas as outras em tantas outras tragédias. De repente até que outra coisa, outra causa, outra imagem qualquer inunde a nossa sensibilidade de Facebook. Até porque o motivo pelo qual Aylan veio dar à nossa praia é demasiado complexo, demasiado difícil (quem tem solução para a Síria e o EI levante o braço), demasiado contraditório com a nossa visão de europeus que desesperam com a baixa natalidade mas não querem nem sonhar em compensá-la com não europeus. Até porque acolher e integrar os Aylans custa dinheiro - e não andámos nós, com denodo, a cortar apoios sociais e o valor das crianças no RSI? Até porque Aylan era provavelmente muçulmano - e temos medo do Islão, e motivos para isso. Até porque os "mandantes europeus" que invetivamos sabem tanto como nós o que fazer. E não sabem porque nós não sabemos - e não queremos, de verdade, saber. Até que.

2 comentários:

M de M disse...

Que "belo" ponto de vista...
Já agora deixo aqui outro :
http://www.liberation.fr/societe/2015/09/03/les-photos-qui-changent-le-monde-changent-elles-vraiment-le-monde_1374942?utm_campaign=Echobox&utm_medium=Social&utm_source=Facebook

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Helena Araújo disse...

Obrigada!