05 julho 2015

cidadãos responsáveis e conscientes da sua liberdade e dignidade

(não, este post também não é sobre a Grécia)

Às vezes deparo-me com diferenças enormes entre o que considero normal e o que se faz (e eu própria fazia, e achava normal) em Portugal. Nesses momentos, dou-me conta de que ando há 25 anos em processo de reeducação, uma autêntica lavagem ao cérebro e à sensibilidade. Por exemplo:

1. Já aqui falei sobre a minha zanga pelas perguntas que um banco português me faz, apenas porque quero tirar o meu nome de uma conta que pertence a outra pessoa. Querem saber tudo: com quem estou casada, que é que cada um de nós faz, quanto ganhamos (com comprovativos), e muito mais. Na Alemanha já abri e fechei várias contas bancárias sem precisar de mais do que mostrar o bilhete de identidade. E a Christina já abriu uma conta bancária sem sequer ter de ir ao banco - só teve de ir aos correios, para reconhecer a identidade (por acaso acho que há aqui mais bancos que postos dos correios, mas já me estou a afastar do assunto). Ao ver as folhas que tenho de preencher, e as perguntas que me fazem, pergunto-me como é que os portugueses se sujeitam a isto. Além da cusquice e do sigilo, é a questão do tempo. Ando a arrastar aqueles impressos há semanas porque não suporto a ideia de perder meia hora a dar informações que não quero dar.
Pergunto-me: quem dá a um banco o direito de me fazer essas perguntas, como se lhes estivesse a pedir um crédito de centenas de milhares de euros? Como é que o banco se lembra sequer de me fazer essas perguntas para algo tão simples como tirar o meu nome de uma conta? Por outro lado, se continua a pedir estes dados é sinal de que até agora toda a gente respondeu sem fazer alarde. É o que mais me intriga: porque é que as pessoas se sujeitam a coisas destas?

2. Também já aqui falei do desamor dos alemães aos processos electrónicos, que - descobri há tempos - não se deve a uma espécie de incompetência para a tecnologia, mas de serem avessos a deixar um rastro de dados desnecessário. Se pagarem em dinheiro, por exemplo, ninguém tem como saber o que compraram. O supermercado ao fundo da minha rua criou agora um cartão de cliente anónimo. Só mesmo isso: recebemos o cartão sem ter de preencher nada, e temos na mesma direito a ofertas especiais. A frase do cartaz de publicidade ao cartão é: "não tenho nada a esconder - excepto os meus dados!"
Não é gente que teme por dever alguma coisa. É simplesmente dar valor à privacidade. Este povo já conheceu as consequências de haver dados pessoais nas mãos de sistemas perversos.

3. Há tempos, ao sairmos do aeroporto, vimos que a fila para os táxis começava a dezenas de metros da porta onde estávamos. Tínhamos demasiada bagagem, e vontade nenhuma de ir até ao primeiro táxi da fila. O Joachim resolveu entrar no que estava à nossa frente. Os outros condutores iam protestar, mas ele disse: "eu tenho o direito de escolher livremente o táxi no qual quero ir!"
Fiquei a olhar para ele com cara de "wow!". Que espécie de socialização foi a dele, que lhe permite agora enfrentar com tanta segurança o lobby dos taxistas do aeroporto?!

Isso mesmo: que socialização?

Recentemente, ao traduzir um texto sobre o sistema de ensino em Portugal, descobri que os alunos portugueses têm um cartão electrónico com o qual marcam a hora de entrada e de saída da escola, e que também serve para fazer pagamentos na cantina, no bar e na reprografia. E hoje li que as escolas vão ter uma plataforma online para os pais terem acesso a todas as informações escolares sobre os filhos. A alemã que há em mim reage com surpresa e susto: o quê?! die totale Überwachung?!

Nem sei que me parece esta espécie de pulseira electrónica aplicada às novas gerações do meu povo. A escola e os pais podem controlar tudo o que fica registado no cartão: horários, consumos ("então compraste coca-cola em vez do leite chocolatado?!") (que diria a minha mãe dos lanches que eu não comi para poder comprar cromos do Sandokan? e foram-me tão importantes!) (ou que diria das vezes em que fui a pé em vez de ir de autocarro, para poder comprar cromos de outra porcaria qualquer - malditos cromos, mas também: bendita liberdade de aprender a partir de disparates deste género).

Hoje em dia, os pais podem controlar cada vez mais todos os passos dos filhos, quer no computador quer na cidade. Podem controlar, e controlam. É isso que me assusta mais: crianças que crescem achando normal que os pais e a escola tenham um controlo total sobre a sua vida. Para além da invasão da privacidade (a que as crianças também têm direito, dentro de certos limites), os miúdos habituam-se que têm de se sujeitar a tudo e têm de deixar que os adultos decidam tudo por eles, em vez de treinarem a responsabilidade e a autonomia. E os pais, em vez de conversar com eles, com os professores e com os outros pais num registo de "ninguém disse que a adolescência é fácil", vão para o computador ler as informações sobre esse potencial falhado/drogado/delinquente.

Que diferença em relação aos meus tempos de escola (os meus pais nem sabiam quando é que eu tinha exames, quanto mais testes e trabalhos - o que foi óptimo, porque aprendi a ser responsável e independente) e à escola dos meus filhos (que na primária recebiam todas as semanas uma avaliação por escrito da professora dirigida a eles - "esta semana foi um prazer ver como trabalhavas. Mas notei que a tua letra está diferente: passa-se alguma coisa?" ou "parabéns pelo modo como ajudaste o teu colega fulano quando o viste em dificuldades. Se me permites, dou-te uma sugestão: tenta escrever primeiro a redacção e só depois fazer o desenho, porque de outra maneira pode-te faltar o tempo").
Nas escolas deles, por norma as reuniões sobre as dificuldades de um aluno em concreto eram feitas ou apenas com o aluno, ou com o aluno na presença dos pais, sendo a conversa feita sobretudo entre o professor e o aluno. Porque a maior aprendizagem, e a mais difícil, é a de conhecer-se a si próprio e aprender a ser responsável pela sua própria história.

A propósito, lembro o ar perplexo do meu filho de cinco anos, a contar que o professor indiano da escola internacional lhes tinha dito que havia câmaras escondidas na escola toda, e os professores sabiam tudo o que os alunos faziam. Aos cinco anos, ele já sabia que esse controlo é inaceitável. Lembro também aquele momento, talvez aos 12 anos, em que me estava a mostrar uma sátira pateta no youtube, e passou uma parte à frente porque, como ele disse: "isto não é bom para ti, mãe - é melhor não veres." O que falhei em controlo, ganhei em responsabilidade e comunicação: em vez de se orientar por proibições, orientava-se pelos seus próprios critérios, que comparava com os meus. E nem precisava de esconder o que fazia - assumia-se.

Se podia ter corrido mal? Podia. Claro que podia. Mas os pais e as escolas que entendem que têm o direito de controlar todos os passos dos miúdos, e que os podem obrigar a justificar cada minuto ou comportamento fora da norma, pensam mesmo que é assim que as coisas vão correr bem? Pensam mesmo que é esta a melhor maneira de criar um povo de cidadãos responsáveis e conscientes da sua liberdade e dignidade?

(Há dias, no skype, o Matthias contou-me que tinha ido a uma queda de água que batia sobre um penedo enorme, pelo qual eles escorregavam até caírem no lago com um salto de dois metros. Ele não pôde deixar de comentar com os outros "se estivesse aqui, a minha mãe ia dizer que isto é perigoso". Do outro lado do mundo, com 18 anos, e ainda pensa nos meus critérios? Desconfio que traumatizei os meus filhos mais que dez cartões electrónicos e vinte chips...)


13 comentários:

Rita Maria disse...

A tua comparação bancária não é justa, em nada. A Christina só pode abrir uma conta no banco nos correios porque vai lá assinar a autorização para o banco aceder à sua Schufa, que tem toda a sua história bancária ao longo de anos e anos, muito mais do que os bancos portugueses sabem sobre mim. Aliás, muitas pessoas que querem apenas uma conta multibanco, ou até só uma para receber salários ou pensões para levantá-los não conseguem ultrpassar essa dificuldade (há um movimento contra isso). E mais, os meus senhorios têm igualmente acesso a essa informação, que era também exigida por algumas companhias de telefones.

Sobre a escola lembrei-me também das mil conversas que tive com amigos alemães sobre que programas os pais os deixavam ver na televisão e quais não. Eu ficava sempre espantadíssima, tive alguns controlos de horários e tempos, mas nunca ninguém controlou o que eu lia ou via na televisão.

Acho que é verdade que no geral há mais preocupações com a privacidade na Alemanha (e no geral os países mais ricos defendem com mais intensidade direitos que vão para além dos básicos, isso está estudado) mas as coisas não me parecem ser bem como as pões.

(e não acho que entrar mo último táxi do aeroporto seja enfrentar o lobby dos taxistas mas sim recusar-se a respeitar a forma de auto - organização de um grupo de pessoas)

Trama disse...

Experimenta dizer não preencho. Resulta!

Anónimo disse...

Ola Helena
A minha experiencia com bancos e exactam a contraria: em Portugal, ao querer sair de uma conta so precisei de assinar uma declaracao. Na Alemanha, ao querer abrir uma conta, senti-me dentro de um processo "kafkiano". Ja nao sei quantos formularios preenchi, de tantos. Na Alemanha, quando assinei o meu contrato de trabalho, vi-me obrigada a desnudar o meu passado. Tudo o que fiz desde o liceu! Em Portugal, quando assinei o meu contrato de trabalho, precisei do BI e contribuinte. E quem assinou contrato na antiga RDA concerteza que respondeu a famosa pergunta, se pertenceu aos servicos secretos da RDA!! Enfim, cada um tem a sua experiencia.
Sofia

inconfessável disse...

Não vou falar dos Bancos, nem fazer comparações entre tugas e alemães.
Mas que me faz muita impressão que os pais possam controlar tudo o que os filhos fazem dentro da escola, isso não escondo a ninguém.
Já os estamos a habituar a serem vigiados e controlados por todos. Querem então defender a submissão parva, aos parvos que nós já somos

Célia disse...

Estive numa escola que foi pioneira no uso do cartão electrónico e posso dizer que o controle que refere é o menor dos males.
Com o cartão acabaram-se os assaltos às mochilas para roubar dinheiro, acabaram-se as chantagens que uns faziam com outros para conseguir dinheiro.
O dinheiro não circula na escola. O mesmo é válido para todos os que ali trabalham.
Por força da lei, o cartão regista na memória uma das três opções dadas aos encarregados de educação, no que respeita às saídas da escola.
Por opção do encarregado de educação, o filho pode sair da escola quando lhe apetecer e ter dinheiro para comprar lá fora o que lhe der na real gana.
Nestes tempos, em que já nem há cromos para a troca, será que haverá pais que abdiquem deste controle e prefiram que os filhos corram riscos em nome do direito à privacidade e livre arbítrio?

Helena Araújo disse...

Rita,
sobre a Schufa: a Christina tinha acabado de fazer 18 anos, e o registo dela na Schufa estava a zero. Mas a minha questão essencial é sobre exigirem dados que não fazem sentido. Nos exemplos que deste, faz sentido exigir a Schufa - porque estás a fazer contratos com entidades que têm de confiar em ti e na tua capacidade de pagar. No meu caso, que quero apenas tirar o meu nome de uma conta, não faz sentido pedirem-me informações como se lhes estivesse a pedir um crédito enorme.

Sobre as conversas com os teus amigos: uma coisa são as regras que os pais impõem aos filhos (e estou longe de concordar com muito do que certos pais fazem; eles pensarão o mesmo de mim), outra coisa é o controlo total por parte das instituições públicas, e esta permanente comunicação com os pais, que me assusta. Que espaço sobra para a liberdade? Inclusivamente a liberdade de fazer asneiras?
Eu detestaria ter no meu local de trabalho um colega que tem - para além das outras - a função de comunicar ao chefe sempre que eu faço alguma coisa que não está inteiramente nos conformes.

Sobre o lobby dos taxistas: essa história pretendia dar um exemplo de alguém que se sente suficientemente livre para questionar a ordem imposta. Não sei porque é que, sendo eu o cliente, devo respeitar formas de auto-organização que não têm em conta os meus interesses. Se as pessoas se recusarem a aceitar tudo passivamente, eles vão aprender a organizar-se de outra forma. No caso do aeroporto, tendo os táxis a chegar ao sítio onde são precisos, em vez de fazerem uma fila única e os clinetes que empurrem as suas malas até ao carro. Ou, no de Lisboa (um exemplo ainda mais interessante) fazendo duas entradas nos táxis: os táxis na frente da fila levam pessoas para percursos logos, e os que não esperaram mais de cinco minutos levam as pessoas que fazem percursos curtos dentro da cidade. Mas claro que em termos dos interesses desse grupo, é muito mais fácil organizarem-se para exigirem um pagamento fixo de 20 euros.

Helena Araújo disse...

Trama,
estava a pensar fazer isso, sim.

Helena Araújo disse...

Sofia,
talvez eu própria tenha tido também experiências dessas - mas não me lembro. Não me lembro mesmo nada de ter tido qualquer dificuldade para abrir contas bancárias na Alemanha - e já abri várias, ao longo dos últimos 25 anos.
Não quero empolar demasiado este caso, mas é demasiado flagrante. Até me pergunto se se enganaram no formulário, e me deram sem querer o de pedir um crédito para comprar casa...

Helena Araújo disse...

inconfessável,
era mesmo isso que eu queria dizer: estamos a habituar os nossos filhos a aceitar passivamente o controlo.
Falei dos alemães porque aqui se sente muito mais que em Portugal essa repulsa pelo controlo por meio de dados electrónicos, e se ouve muito mais as expressões "protecção dos dados" e "direito à privacidade". Tenho falado sobre esse cartão com amigos, e a primeira coisa que eles dizem é isso mesmo.

Helena Araújo disse...

Célia,
não tinha pensado na questão dos roubos.
Mesmo assim, preferia ensinar o meu filho a guardar bem o dinheiro dele, em vez de optar por um sistema no qual não lhe roubam o dinheiro mas ele deixa de ser senhor das suas escolhas, porque pode ser controlado.
Mas reconheço que esta questão não é fácil.
Já quanto à questão que coloca no final, não tenho dúvidas: digo muitas vezes que a gente não pode criar os filhos debaixo da cama, livres de todos os perigos. Eu prefiro que os meus filhos corram riscos em nome do direito à privacidade e ao livre arbítrio. É essa a única maneira de se prepararem para a vida.

Anónimo disse...

Helena, essa dos bancos é maravilhosa... Sabes aquela do Homem que queria deixar de ser Engenheiro no Montepio?

Já tive semelhantes... Desde me pedirem imensos documentos para mudar de morada (qnd o que estamos a falar é de comunicações por carta e nem sequer tenho nenhum empréstimo!..), a recusarem-se mudar a minha morada porque naquele momento n tinha nenhum contrato em meu nome na nova morada... ->resultado: O banco acha perfeitamente normal mandar Correspondência para uma morada antiga onde eu afirmei que já não residia mas recusa-se a mandar morada para aquela onde eu estou a pés juntos a afirmar que resido!... Surreal.

A páginas tantas chegámos a um compromisso, tão ao sabor da vontade portuguesa. A morada "oficial" fica a da carta de condução (a da minha mãe onde vou passar umfimdesemana de tempos a tempos...) mas existe uma morada de "correspondência" onde essa já pode ser qualquer uma que eu diga, sem mais papelada.

Ainda mais surreal foi eu tentar acabar com uma conta conjunta que tinha com outra pessoa. Semelhante ao que te disseram MAIS uma declaração assinada pelos dois para eu "poder desfiliar-me da conta".... Considerando que isto era o resultado de uma relação terminada, acho genial que seja mais complicado finalizar uma conta que a própria relação... * Resultado. a conta lá ficou a zeros há anos. Não faço mínima ideia do que esperam para a terminar mas pelos vistos só com autorização papal..



* Isto independentemente de nos darmos bem no "pós" e simplesmente ter sido uma questão de agenda nunca lá termos ido em conjunto, mas imagine-se que não nos dávamos de todo? COmo raio é que se procede nesse caso?

Helena Araújo disse...

Um amigo contou-me uma história muito parecida - divórcio, comunicação extremamente difícil, e o banco que exige o comum acordo para um deles poder sair da conta...
Parece que é mais fácil sair do contrato de casamento que sair da conta bancária.

Lembro-me vagamente da história do Montepio. Podes relembrar-ma?

Entretanto já ouvi tantas histórias sobre disparates com bancos alemães que chego à conclusão que a burocracia é uma espécie de tumor no cérebro que vitimiza pessoas de todas as nacionalidades e culturas.

O Wladimir Kaminer conta uma história divertida a propósito: ele queria que o seu tio Wania o viesse visitar a Berlim, escreveu à entidade responsável pela emissão do visto (acho que era o consulado alemão numa cidade russa), e começou a receber respostas automáticas. Às tantas já começava a correspondência assim:
"Exmº Senhor Robot,
muito agradeço a sua missiva de..."

Anónimo disse...

a história do homem q n queria ser engenheiro:
http://arrastao.blogs.sapo.pt/546793.html -> no fim do do post estão os links para os posts originais por ordem.