20 junho 2015

"opera prima" - uma ópera do nosso tempo





Jonathan Dove e Simon Halsey (fotos)


Os trompistas, que fazem o tema do Minotauro, são conduzidos por Ricardo Silva
um português bolseiro da Orchesterakademie.


É hoje a estreia da nova ópera do Jonathan Dove, "The Monster in the Maze", sobre a história de Teseu e o Minotauro. Estreia mundial, que responsabilidade a nossa! Embora, de facto, a verdadeira estreia mundial seja amanhã, com a transmissão em directo (e gratuitamente) pelo Digital Concert Hall. Domingo, 21 de Junho, às 4 da tarde (3 em Portugal), aqui. Hoje é apenas o aquecimento, perante 2400 pessoas...

Durante estes dois meses de preparação, fui-me apropriando desta ópera a pouco e pouco. Começámos pelo fim, pela mensagem de esperança "e assim a luz expulsa a noite" (e, logo no primeiro ensaio, o nosso maestro a pedir "iluminem bem a palavra luz"). Meu amor à primeira vista:

E assim a luz expulsa a noite, um dia claro nasce, e o seu riso é para sempre, para sempre, para sempre.

Depois fomos ao princípio, quando os atenienses comentam entre eles a crueldade do rei Minos, que exige que os filhos de Atenas sejam enviados de barco para serem entregues à morte. (Barcos da morte no Mediterrâneo? Onde é que já ouvi isto?...)

No primeiro ensaio com o Simon Halsey, a orquestra e os outros dois coros, fiquei fascinada com a beleza das melodias dos jovens, a doçura do coro infantil, e os desdobramentos de tensão na sobreposição dos vários grupos e solistas. Para além disso, comoveram-me os sinais da verdadeira riqueza deste Education Programm: o maestro que se dirige aos grupos do coro infantil chamando-os pelo nome do seu bairro, e são bairros que nos habituámos a associar a grupos sociais pobres e sem acesso à cultura erudita; no fim do ensaio, os gorjeios de língua à maneira do norte de África e da Turquia que ecoaram na sala quando os jovens aplaudiram; e o rapazinho que, sem saber como reagir ao nosso entusiástico aplauso ao coro infantil, endireitou o tronco, levantou os braços e mostrou orgulhosamente os músculos - no coração da Filarmonia de Berlim.

Uns dias mais tarde, durante o almoço na cantina dos artistas, falaria com uma cantora do Rundfunkchor que estava na Filarmonia a trabalhar com um dos coros das escolas primárias, e ela comentaria que é um trabalho muito exigente do ponto de vista emocional, porque muitas vezes aquelas crianças a comovem até às lágrimas. Como a compreendo! Também lhe confessei que tinha alguma inveja dos cantores do Rundfunkchor, que são pagos para trabalhar com o Simon Halsey. Ela sorriu, e concordou. Parece que não sou só eu a reparar no charme dele, do seu humor e da música do seu alemão com toque britânico, e no pormenor delicioso da camisa que no princípio do ensaio está elegantemente metida dentro das calças, e depois se vai esbanigando.

Voltando à nossa história: começa com o rei Minos a falar aos atenienses. "Ouve, Atenas! Foste vencida. Vencida, conquistada, destroçada. Enche todos os anos um barco com a tua Esperança, os jovens da tua cidade, e envia-o para o mar, para mim, o rei de Creta!" (Enviar para longe os jovens que são a Esperança de um povo? Onde é que eu já ouvi isto?...)
Os atenienses estão desesperados, os seus filhos estão em choque, e é então que surge Teseu. O Teseu desta ópera é um herói do nosso tempo: cool, cheio de swag. "Olá!", diz ele alegremente ao grupo de atenienses que estão à beira de um ataque de nervos. "Que choradeira é esta?"
Os jovens enchem-se de esperança: "Teseu!, o Teseu é o mais inteligente!, o Teseu é o mais forte!, é o mais valente!, é modesto!, consegue o que ninguém mais consegue!" e o Teseu faz charme, "ora essa, isto é só fun". Combinam que Teseu vai com eles para os ajudar a escapar ao Minotauro, preparam-se para partir, e eis que surge a mãe do Teseu, e parece saída de um livro do Freud. Pior, parece eu a falar com os meus filhos: "Nem penses! Isso é perigoso! Podes morrer! E eu, como é que fico? Não me deixes sozinha!"
O Teseu também parece meu filho: "Ó mããããeeee!" - impossível não rir com os tiques de adolescente que o Florian Hoffmann empresta ao seu personagem.
Depois os pequeninos juntam-se ao grupo, implorando aos irmãos mais velhos que não partam, que fiquem em Atenas. Mas eles põem-se a caminho. Teseu diz à mãe que deu a sua palavra àqueles jovens, reconhece que a comida dela tem um aroma muito sedutor, mas que a aventura ainda o seduz mais (ah, YOLO!).
Para trás ficam os atenienses, de coração destroçado.

Quando os jovens chegam a Creta, são recebidos pelo rei e por um mob sádico e sedento de sangue. Entram no labirinto, onde - tão jovens do séc. XXI! - os miúdos se queixam do fedor e da falta de conforto. Ao ouvir ruídos, os miúdos da frente fazem "chiu" e os de trás protestam: "já não se pode falar?!"
É Dédalo, o construtor daquela obra, que os leva até ao Minotauro. Durante a luta com o Minotauro (não vou revelar tudo, vejam no Digital Concert Hall) o coro dos jovens transforma-se em balões da banda desenhada: Batsch! Uffff! Peng! Knack!

O resto da história é o esperado: Teseu vence o Minotauro, saem do labirinto, e entram no barco rumo a Atenas, onde ninguém acredita no seu regresso. Os pais repetem "eles nunca mais vão voltar a casa" como uma canção de embalar - como se quisessem adormecer a sua dor. E chega o grande final, o momento da alegria e da esperança, com todos os solistas, os três coros em palco, a orquestra e dois maestros - o Simon Rattle  e o Simon Halsey - a aclamar o brilho daquele dia de riso claro para sempre, para sempre, para sempre.
Esta parte é muito difícil. Há demasiadas frases sobrepostas, as pessoas em palco têm dificuldade em ver o Simon Halsey, que dirige os três coros e ainda acompanha o que Simon Rattle faz na orquestra. Queremos todos entoar a esperança com enorme júbilo, mas sentimo-nos um bocado perdidos no meio da uma extrema diversidade. Alguns dos cantores nem conseguem ver o maestro, que se multiplica em gestos para oito músicas paralelas, tentando conduzir todos com segurança para um final de perfeita polifonia. Nestas condições, não basta esperar ter um dos melhores maestros da Europa e confiar nele. Para além de seguir as indicações do maestro, cada um de nós tem de saber muito bem o seu papel e o modo como se combina com o dos outros, tem de estar extremamente concentrado, tem de estar sempre atento para ouvir o seu grupo e todos os outros, tem de dar o melhor de si para garantir o melhor resultado do conjunto.

É, sem dúvida, uma ópera para o nosso tempo.


Sem comentários: