14 junho 2015

"opera prima" - ensaio com público



(fotos)
(eu sou a quarta bandeira da direita...)

Hoje a Filarmonia de Berlim abriu as portas ao público. O dia começou às 11, com um ensaio público de parte da ópera que vai ter estreia mundial no próximo sábado, dia 20. Antes disso, tivemos um ensaio sem público, pelo que o meu dia começou um bocadinho antes. Muito antes, aliás: antes de sair para o ensaio andei em casa numa correria a pô-la bonita para o Joachim que andou uma semana lá fora a lutar pela vida e regressa hoje, e a pôr-me bonita para um ensaio com público na sala grande da Filarmonia, e (aquela coisa do "já agora") a estender a roupa que foi lavada durante a noite, e - claro - a levar o Fox ao primeiro passeio do dia. Ao regressar a casa o Fox espetou os pés no caminho: não queria entrar em casa. O Joachim fora, eu a passar imensas horas fora de casa devido a trabalhos vários, ele sozinho demasiado tempo. Pobre Fox, deve sentir a casa como um castigo. Já estava atrasada, atrasadíssima, pelo que o trouxe para casa ao colo. Ele deitou-se logo no cesto, com um olhar de partir o coração.
Fui para a Filarmonia, entrei como um bólide na sala onde já estavam a fazer aquecimento de voz, e só tinha 30 segundos de atraso. Depois fizemos o nosso ensaio. No coro de Creta, um coro de sádicos, o Simon Rattle tentou tudo por tudo para nos conseguir fazer agressivos e assustadores, mas ainda temos muito de aprender. Ele bem dizia "demasiado, é muito bom!", e nós esforçávamo-nos por ser demasiado agressivos para ele ficar satisfeito. Debalde. A culpa deve ser do ensino público, que anda a dar cabo de nós.
Para repetirmos a cena dos "cretinos" (há quem lhes chame assim - a gente ri-se muito, lá na Filarmonia) saímos do bloco H, onde estávamos, e corremos pelo lado de fora da sala para o bloco A (quem conhece aquela casa imaginará o programa de fitness que esta ópera implica para os cantores). À porta do bloco A já havia pessoas à espera para entrarem na sala. A nossa guia disse "têm de nos deixar passar" e um refilão refilou "ter, não temos nada!" (imagino que isto seja muitos anos de educação para a Democracia - as pessoas ficaram hipersensíveis a tiques de autoridade, mesmo que sejam tão inócuos como este). Mas lá nos deixaram passar, e lá ficámos à espera, até que veio nova ordem: como já não havia tempo para repetir essa parte, devíamos voltar para o bloco H, para começar em breve o ensaio com público. Alguém dos que estavam à espera comentou "esta Filarmonia, que coisa mais mal organizada!" Até estremeci. Eles não sabem nada! Uma ópera novinha em folha, que começou a ser ensaiada há menos de dois meses, com 100 cantores adultos não profissionais, muitos deles sem sequer terem experiência de coro, mais dezenas de adolescentes e crianças (3 coros, portanto), três solistas, um narrador e um bailarino, uma orquestra com músicos amadores (e alguns deles são tão jovens que nem chegam com os pés ao chão quando estão sentados na sua cadeira), uma encenação extremamente complexa que nos faz andar a correr pela casa para voltar ao bloco inicial mas em lugares diferentes (sim, que cada um de nós pertence a 3 grupos diferentes; eu, por exemplo, sou dos grupos contralto, 2 e C). Do ponto de vista da capacidade de organização, o que esta equipa está a fazer é um trabalho brilhante.
O Simon Rattle cumprimentou o público, explicou que isto era apenas um ensaio, e que eles iam ver uma obra em construção. E que era uma aventura, ou uma viagem de carro - se houver um acidente, temos de parar, disse ele. Eu estava à espera que houvesse um acidente, porque o mais interessante é mesmo ver o processo de correcção de erros - sobretudo o modo bem-disposto como eles (tanto o Simon Rattle como o Simon Halsey) nos dizem o que querem receber de nós. Mas parece que não houve nenhum acidente enorme, e lá fomos nós pela peça fora. Ainda não está perfeita, mas já está bastante impressionante. Na parte do coro de Creta (quando estamos no meio do público e dizemos coisas horrorosas às crianças de Atenas que estão a chegar para irem servir de almoço ao Minotauro), uma menina ao meu lado começou a olhar para mim e a encolher-se toda de medo. Pisquei-lhe o olho para ela saber que isto era tudo teatro, e ela encolheu-se ainda mais. Deve ter pensado que eu era a bruxa que a queria atrair à casinha de chocolate.

O que tenho de aprender para o futuro (que é já no dia 20):
- não olhar para o público, especialmente para meninas pequeninas todas encolhidas de medo
- não dançar nem sequer baloiçar ao som da música, por muito bonita que seja
- não sorrir encantadíssima quando os outros dois coros estão a cantar
- não sorrir encantadíssima quando o Teseu aparece (e é difícil, porque ele é encantador)
- olhar mais para o Simon Rattle (sim!!! isto é inacreditável, mas está-me a acontecer! uma vez na vida tinha uma boa desculpa para não tirar os olhos do Simon Rattle, e esqueço-me de olhar para ele porque estou presa das crianças que têm melodias lindas, ou das fanfarronices do Teseu, ou da preocupação da mãe dele, ou dos pequenitos que estão na orquestra a tocar ao lado de alguns filarmónicos - o que não me falta nesta ópera são distracções, de modo que passo a vida a chegar com atraso aos lamentos de Atenas (este é o momento em que uma amiga minha vai dizer "pffff, andas há anos a chegar com atraso ao sofrimento dos gregos...") (olá, Rita! estás a ter um bom fim-de-semana?)
- preparar-me realmente bem, saber a ópera de cor - não apenas as minhas frases e os meus gestos, mas o momento exacto em que começo a cantar, e o momento exacto em que largo o "t" ou o "d" do fim da palavra

Ainda temos uma semana de trabalho intenso, ainda estamos a meio do processo - e eu já estou cheia de saudades destes dias. E a sonhar que, se tiver sorte, para o ano há mais.

Entretanto, hoje na Filarmonia há quatro ou cinco palcos onde acontece música excepcional, mas eu vim para casa, porque ainda tinha o coração na tristeza dos olhos do Fox quando o deixei de manhã. O dia continua: já plantei umas trepadeiras, já me zanguei com o Fox que correu para a rua a ladrar a uma senhora, o Joachim voltou, estou a pensar se regue o jardim para as nuvens finalmente se abrirem e largarem a água que têm estado a prometer o dia todo, e nada. A normalidade.  


1 comentário:

Rita Maria disse...

Eu não acho que tenhas ouvido demasiado tarde uns, acho é que ouviste com demasiada prontidão outros, julgando-os em perigo. Claro que o perigo dos primeiros era a miséria e o dos segundos o julgamento no tribunal dos teus amigos no Facebook, mas cada um define as suas prioridades como pode ;) ;) ;)

(não sei se pus smileys suficientes para isto passar - na verdade acho que se deve sempre defender quem achamos ter razão, mesmo que o risco seja só serem mal julgados pelos nossos amigos do Facebook)