17 maio 2015

não é só isso, estúpido!



A propósito das afirmações de Hélder Trindade, presidente do Instituto Português do Sangue e da Transplantação (IPST), defendendo que é necessário proibir os homossexuais de dar sangue (aqui, aqui e aqui), e do modo como João Miguel Tavares tem tentado defender essa posição, nomeadamente nos textos "sangue, gays e discriminação" e "é a ciência, estúpido", gostava de acrescentar algumas ideias.

Começo por uma sugestão para garantir que o sangue que as pessoas recebem seja seguro: depois de informar os dadores sobre as práticas sexuais de risco, é-lhes perguntado se não fizeram nada disso nos últimos x meses. Se a resposta for negativa, o sangue que doarem pode ser imediatamente analisado, tratado e posto no circuito das transfusões (não tem uma segurança de 100%, mas essa é praticamente impossível de conseguir). Se a resposta for de certa dúvida (a pessoa que não sabe o que o marido anda a fazer quando chega tarde a casa, a pessoa que tem um companheiro relativamente recente, etc.) o seu sangue vai para um lote temporariamente cativo, do qual se extrai o plasma (que pode ser conservado durante mais de dois anos), e pede-se ao dador que regresse ao centro umas semanas mais tarde (a tal "janela", o tempo necessário para aparecerem anticorpos, anda entre as 3 e as 12 semanas), para fazer análises que comprovem que não estava infectado. Perdem-se os outros produtos do sangue, mas ganha-se um plasma que, de outro modo, não chegaria a ser recolhido. Só depois dos resultados negativos das análises é que aquele lote de plasma fresco congelado pode ser usado (e este sim, apresenta uma garantia de 100%). Custa mais algum tempo e dinheiro, mas, tendo em conta que o objectivo é garantir o mais possível a qualidade dos produtos do sangue sem ofender ninguém (e sem contribuir generosamente para fortalecer, a partir de agentes do próprio Estado, sentimentos homofóbicos na sociedade), não me parece que o custo em tempo e dinheiro seja algo incomportável.

Hélder Trindade e João Miguel Tavares preferiram um outro tipo de abordagem que, além de rejeitar dadores saudáveis, também representa um gigantesco passo atrás na construção de um país no qual o respeito pela dignidade humana é um valor essencial. Vejamos alguns dos argumentos usados, e outros que faltaram neste triste debate:

Aproveitei o título do João Miguel Tavares (curiosamente, mesmo antes de o seu texto ter sido publicado, já estava a pensar escrever um post usando variações desse slogan) (e acrescento um apontamento sobre tradução: suspeito que "estúpido" não é bem o "stupid" americano. No nosso "estúpido" há uma carga suplementar de insulto que não existe em "stupid". Pelo que troquei o "estúpido" por "pateta".)


1. É a estatística, pateta!

É a estatística - essa espécie de biquíni que mostra quase tudo e esconde o essencial. Ou que encontra correlações entre a chegada das cegonhas e o aumento do número de nascimentos na Suécia. Ou que conclui que se um frango é comido numa sala onde há duas pessoas, cada pessoa comeu meio frango - esquecendo que um deles pode ser vegetariano...
As estatísticas que mostram que a taxa de infecção com HIV é muito superior nos homossexuais são a base para a decisão de proibir os homens gay de dar sangue (todos eles, excepto os que estão em abstinência sexual).
Pergunto:
- Quem é que se lembrou de, para efeitos de decidir quem pode dar sangue, estudar a taxa de infecção dividindo as pessoas por grupos de orientação sexual? Porque é que não procuraram antes estatísticas sobre a taxa de infecção por práticas sexuais e por protegidas/desprotegidas?
- Será que os homossexuais são todos iguais, praticam todos sexo anal, têm todos comportamentos de risco? Mesmo que praticassem todos sexo anal, convém notar que o problema não é o sexo anal em si, o problema é o sexo anal desprotegido com uma pessoa que tem HIV/sida.
- Quanto aos heterossexuais, que fazem muito boa figura naquelas estatísticas: comem todos a mesma quantidade de frango? Ou há entre eles pessoas que têm comportamentos de risco (por exemplo: homens que recorrem regularmente a sexo pago e são demasiado macho para usar camisinha)? A taxa de infecção para os que têm comportamentos de risco é igual à média de todos os heterossexuais, ou há diferenças flagrantes? Os critérios de exclusão de dadores têm essas diferenças em conta?

Anda cá, ó estatística: se fosses tu a chave da questão, era bom que te chegasses à frente e fizesses o trabalhinho até ao fim.


2. É a ciência, pateta!

A ciência é neutra e infalível. Que o digam os políticos que tentam tomar decisões para salvar o clima do nosso planeta, e se perdem entre teorias divergentes que emanam da comunidade científica (parece que o problema é haver mercenários na ciência) (quem diria...). Que o digam as pessoas que no séc. XX foram vítimas de políticos convictos das teorias raciais do séc. XIX. Lembram-se de quando os nazis recorreram à ciência para justificar a proibição de casamentos mistos, porque estes enfraqueciam o sangue ariano?


3. É a carga simbólica das palavras, pateta!

A propósito de enfraquecer o sangue alheio, já repararam que, no fundo, o que se tem andado a afirmar tranquilamente por aí é que o sangue dos homossexuais está estragado, e não se pode misturar com o nosso, porque o estraga? Setenta anos depois do fim do nazismo, andamos outra vez (ou ainda) a falar em grupos que têm mau sangue, e escudamo-nos na ciência.
(Sim, eu sei que ninguém aqui é nazi. Só queria chamar a atenção para estes pequenos passos iniciais num caminho cujo destino já conhecemos, e ao qual não queremos voltar.)
(Sim, eu sei que a taxa de infecção entre os homossexuais é muito mais alta que entre os heterossexuais - mas daí a concluir que todos os homossexuais são iguais, e que o sangue dos heterossexuais é que é bom, vão vários saltos mortais à retaguarda.)


4. É a saúde pública, pateta!

Se o que nos preocupa realmente é a saúde pública, e tendo em conta o estado actual das mentalidades em Portugal, as teses do presidente do IPST e do João Miguel Tavares falham, porque:
(a) Não bastam as estatísticas, e é um erro grave, do ponto de vista da saúde pública, criá-las e usá-las presas de preconceitos, porque nos dá a ideia ilusória de que basta rejeitar um grupo para resolver o problema, omitindo os problemas que há noutros grupos.
(b) Afastar todos os homossexuais resulta em perda de dadores (temos dadores em tão grande número que nos podemos dar ao luxo de rejeitar dadores saudáveis?)
(c) Sabendo que antes de se dar sangue é preciso responder a um inquérito, e que as pessoas que dão sangue o fazem movidas por uma enorme generosidade (ou seja: querem ajudar, e não infectar propositadamente os doentes que receberem as transfusões de sangue), há que pôr as questões sobre as suas práticas sexuais recentes, e não agredi-las com perguntas sobre a sua pertença a um grupo marcado pela rejeição.
(d) Sabendo o modo como em Portugal se respeitam certos segredos (medicina, justiça, etc.), é uma grande puerilidade acreditar que as pessoas vão revelar honestamente a sua orientação sexual ou as traições do cônjuge num questionário que pode ser visto sabe-se lá por quem.
(e) Ignoram o risco das pessoas monogâmicas que praticam sexo desprotegido com o cônjuge. Mesmo estando dispostas a dizer a verdade, podem elas assegurar com toda a certeza que o cônjuge não é bissexual, ou que não pratica sexo desprotegido com profissionais do sexo ou amantes ocasionais? Podem estar infectadas sem fazer a menor ideia, mas respondem ao questionário de muito boa-fé.  

Estar consciente do poder dos preconceitos, informar-se, informar com respeito - tudo isso dá muito mais trabalho que escolher grupos e dizer que essa gente não presta para dar sangue. E la nave va.


5. É a ética, pateta!

(Ora cá vamos nós a um pequeno exercício de redução ao absurdo.)
Receber sangue saudável é um direito indiscutível do doente. Mas os questionários têm uma fragilidade enorme, porque não é possível obrigar um homossexual, por exemplo, ou um casado que omite da mulher que é bissexual praticante ou cliente habitual de sexo pago e não protegido, a dizer a verdade. Também não é possível verificar a veracidade das respostas. Para garantir a segurança do doente, o melhor é criar uma base de dados onde se registe tudo o que se sabe sobre cada potencial dador. Abrir uma linha de denúncias, claro, mas também vigiar activamente, pôr câmaras junto aos pontos de prostituição (feminina ou masculina), filmar as matrículas dos carros, verificar se houve contacto não protegido com os profissionais do sexo. Para bem ser, e não haver o menor risco - afinal de contas, estamos a falar da saúde pública, que é um valor muitíssimo importante e que justifica atropelar todos os outros! - mais valia impor a essas pessoas um nome do meio suplementar que as identificasse logo como elemento de risco: Manuel Anal Silva, Manuel Promíscuo Silva, Maria do Promíscuo Silva, Maria Promíscua Silva, Maria Anal Silva, e por aí fora. Também se lhes podiam atribuir cores, cor-de-rosa para os homossexuais, verde para os heterossexuais do delito comum de promiscuidade...
"Ah, também não é preciso ir tão longe..." - porque não? Afinal, até onde se pode ir em nome da saúde pública? Pode-se insinuar tranquilamente que "Promíscuo" é o nome do meio de todos os homossexuais, mas não se podem apontar a dedo os homens que praticam sexo desprotegido com prostitutas? Porque não?


6. É o nosso futuro, pateta!

Não deve ser preciso lembrar os homossexuais nos campos de concentração (e foi há apenas 70 anos) marcados com um triângulo rosa que os tornava ainda mais expostos à maldade alheia, nem contar que na Alemanha a homossexualidade só deixou de ser considerada crime depois da reunificação (há menos de um quarto de século), ou falar da Gisberta, que no Porto foi brutalmente espancada até à morte, ou referir que há nos nossos dias jovens portugueses que se querem suicidar por serem vítimas de agressões homofóbicas na escola, ou falar dos quase 200 crimes de ódio contra LGBT cometidos em apenas um ano em Portugal. Nós sabemos tudo isso, mas muitas vezes esquecemos que é responsabilidade nossa lutar contra o preconceito e os comportamentos agressivos que ainda estão bem instalados na nossa sociedade, justificados pela própria lei e pelos costumes. E, pior, esquecemos que uma frase menos pensada destrói um trabalho de décadas.
Não podemos mudar o passado, mas podemos trabalhar para o futuro. Quando andamos por aí a falar sem pensar muito, desculpando-nos com a liberdade de expressão e uma pretensa ciência neutra e infalível, estamos conscientes da nossa responsabilidade perante o mundo?


2 comentários:

Lucy disse...

Viva, Helena! Viva! Viva!

Helena Araújo disse...

Obrigada, Lucy.
Viste o artigo da Fernanda Câncio ontem, no DN? É tudo inacreditável.