20 maio 2015

a religião é que nos salva




Ontem fomos a Berlim Oriental para uma festa com russos, ucranianos e alguns alemães que nasceram desse lado do mundo.

Fiquei a saber que consta que na Rússia voltaram a criar unidades militares como as que na segunda guerra mundial tinham como missão abater os soldados que, na linha da frente, olhavam para trás. Pelos vistos, hoje em dia as saudades de casa também não são muito saudáveis para os soldados russos que calha de se encontrarem na Ucrânia. Também falaram de prisioneiros russos postos em liberdade desde que aceitem ir viver para esse país (lembrei-me logo da heróica tripulação das nossas caravelas...). A pedido veemente de uma das pessoas mudámos de assunto porque, apesar de serem todos muito amigos, não têm a mesma opinião e não querem sequer falar sobre o tema. Mas que coisa! Se nem entre pessoas que se querem bem é possível falar sobre isso, está tudo dito sobre a possibilidade de paz e entendimento entre os povos...

Falámos então da ideia de um mundo sem dinheiro, só com cartões. "Óptima ideia", disseram, "viva a transparência absoluta". Foi aí que me dei conta de que os alemães, que entraram tarde e a más horas no sistema de pagamento por cartão, não se atrasaram por serem especialmente avessos às novas tecnologias, mas porque são alérgicos à possibilidade de algum organismo os poder observar. Imagine-se, por exemplo, uma sociedade que obriga as pessoas a descontar mais para o sistema de saúde consoante o seu estilo de vida, imagine-se uma pessoa com cancro de pulmão a ter de prestar contas sobre uma lista de todos os maços de tabaco que comprou ao longo da sua vida. Mesmo que hoje isso não seja um problema, ninguém sabe como é que a sociedade vai evoluir e quem é que um dia vai ter acesso a todas as informações que já agora vão sendo armazenadas.

Optámos por mudar de assunto, passámos aos telemóveis modernos. Os fantásticos, com pilha incorporada, que não se desligam nunca, que estão sempre disponíveis e atentos. Um dos alemães que cresceu na RDA tirou o seu telemóvel do bolso junto ao coração e disse: "aqui está a minha Wanze" ("Wanze" é um "bug", um pequeníssimo aparelho de escuta e transmissão, que a Stasi espalhava como brinde oculto pelas casas das pessoas que lhe interessavam). Pelos vistos é possível ouvir tudo o que se passa junto do telemóvel, mesmo quando está desligado ou em modo de voo. Temos de manter o telemóvel bem longe de nós para não se ouvir o que contamos à mesa ou no carro, ou se não queremos que o mundo saiba que ressonamos. Já sabia que tudo o que escrevo na internet (nomeadamente as mensagens privadas) é tão confidencial como um postal de férias. Mas é ainda mais incómodo saber que não devo falar nunca na presença do meu telemóvel. Claro que quem não deve não teme. Mas isso é só até algum serviço secreto suspeitar que sou terrorista. Ou até uma empresa poderosa querer saber que ideias geniais ando a vender à sua concorrência. Ou um stalker, nem quero pensar até onde é que um stalker poderia ir se tivesse estes meios à sua disposição.

Outro assunto, outro assunto!, pedimos - e perguntámos ao jornalista que entrevistou há pouco o Putin como é que as coisas estão na Rússia. Ele ia contar, mas interrompeu a primeira frase para dizer um ditado em russo, algo como "o que não sei não me tira o sono". Oh, durmo muito mais descansada sabendo que há coisas que não sei e que se soubesse me tiravam o sono...

Passámos para as anedotas. As do bloco de Leste (*), as de trocadilhos subtis (**), as do Hitler (***). Piada puxa piada, fomos desembocar às anedotas de católicos - e foi essa a maior surpresa da noite: nós, dois católicos de países diferentes, no meio de gente que cresceu arredada do colo da Santa Madre, e que se espantava muito com as anedotas desbragadas que os católicos contam. A reacção deles, entre a gargalhada e o embaraço, perante a minha anedota de quando os soldados invadiram o convento e queriam violar todas as freiras mas estas pediram que ao menos poupassem a Madre Superiora, muito velhinha, que entretanto já vinha a descer as escadas o mais depressa que podia: "meninas, guerra é guerra!". Ou a hesitação de um deles em contar uma anedota que ouvira a católicos, os milhentos "olhem que é horrorosa, olhem que depois de a ouvirem não a esquecem, olhem que esta anedota cola-se a nós", e depois, quando contou, era apenas isto:

Um padre pediu ao pastor protestante que o substituísse durante uns dias na paróquia, porque tinha de se ausentar. Ensinou-lhe tudo o que era preciso fazer, deixou-lhe uma lista de pecados e penitências para as confissões, e partiu. O pastor lá foi fazendo o trabalho o melhor que soube. Um dia, no confessionário, apareceu um paroquiano que confessou ter feito sexo anal. O pastor procurou "sexo anal" na lista dos pecados, mas não constava. Pelo que pediu ao homem que esperasse um bocadinho e foi a correr pedir ajuda. Encontrou na sacristia o rapazinho que ajudava à missa, e perguntou-lhe:
- O que é que aqui é costume dar para sexo anal?
- Oh, depende. Umas vezes um gelado, outras vezes um chocolate...

Acabámos a noite em gargalhadas, completamente esquecidos dos temas e problemas do início do serão. É bem verdade que a religião salva.


(*)
Roosevelt, Churchill e Estaline vão num avião a caminho de Yalta e fazem apostas sobre a lealdade dos seus ajudantes. De Gaulle chama o seu, e pergunta-lhe:
- Serias capaz de fazer tudo pela tua pátria?
- Tudo!
- Então atira-te deste avião sem pára-quedas!
- Ai isso é que não. Tenho mulher, tenho filhos - tenho obrigações.
Churchill chama o seu, e pergunta:
- Serias capaz de fazer tudo pela tua pátria?
- Tudo!
- Então atira-te deste avião sem pára-quedas!
- Ai isso é que não. Tenho mulher, tenho filhos - tenho obrigações.
É a vez de Estaline:
- Serias capaz de fazer tudo pela tua pátria?
- Tudo!
- Então atira-te deste avião sem pára-quedas!
- Com certeza!
O ajudante russo vai a saltar, e no último momento os outros dois ajudantes agarram-no e impedem-no de saltar. O russo desata a gritar:
- Larguem-me! Larguem-me! Deixem-me saltar! Tenho mulher! Tenho filhos!

(**)
- Porque é que Bach teve tantos filhos e Kant não teve nenhum?
- Porque Bach era um especialista da fuga e Kant só conhecia a coisa em si.

(***)
EStaline morreu, foi parar ao inferno, foi metido num espeto, começou a ser assado, e ficou furioso ao ver que o Hitler estava confortavelmente instalado a um cantinho, rodeado de livros.
- Então como é?, perguntou ele ao chefe dos diabos. Aquele ali tem aqui tratamento de luxo?!
- Claro que não, respondeu o diabo. Pusemo-lo a traduzir O Capital para hebraico.

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