09 janeiro 2015

crise de identidade (2)



Há tempos comprei um lenço de que gosto muito: pela mistura de padrões, pelos berloques, pelas cores. Quando o viu, a Christina disse "ai, que giro, um lenço palestiniano!"

Bem, não o comprei por ser palestiniano. De facto, estava a fazer por ignorar aqueles ziguezagues.
Mas a exclamação dela fez-me pensar se seria boa ideia sair à rua com um lenço que pode ser interpretado como uma tomada de posição política. E logo na minha rua, onde vive um homem com um cargo importante na comunidade judaica, que anda rodeado de apertadíssimas medidas de segurança. Imaginava o filme: eu a passar repetidas vezes com o Fox em frente à casa dele, as câmaras a filmar, os guarda-costas nervosos...

Não devolvi o lenço.
Ontem de manhã saí com ele posto, e foi muito estranho: todos olhavam para mim muito mais tempo do que é habitual. Normalmente quem passa olha discretamente, diz um tímido "bom dia", e avança. Mas desta vez ninguém dizia "bom dia", e todos me observavam atenta e longamente, descaradamente: os operários nas obras, os donos de cães, os joggers.

Em mim, a única coisa diferente era o lenço que podia ser interpretado como palestiniano - e era o dia seguinte ao ataque ao Charlie Hebdo.

Parece-me que ontem arranjei maneira de andar - involuntariamente - nos mocassins de um muçulmano. Não é agradável.


4 comentários:

Brida disse...

Aconteceu-me algo semelhante em Dortmund logo após o 11 de Setembro. No comboio, no centro da cidade, no autocarro. Não era um lenço, era o meu namorado ou os meus amigos. Não foi uma sensação agradável.

Helena Araújo disse...

Não é, não.
Parece que se sentem no direito de olhar para nós sem respeito.

Gi disse...

Porque o puseste nesse dia, Helena?

Helena Araújo disse...

Não pensei, Gi.
Ia a sair de casa, e vi-o pendurado no cabide, a rir-se para mim.
Só mais tarde, quando estranhei o modo como olhavam para mim, me lembrei do tal ziguezague que andava a tentar ignorar.