15 janeiro 2015

ah, as saudades que eu tinha de um bom escândalo...

(foto)

Parece que uma das maiores editoras mundiais escreveu aos seus autores de livros infantis, pedindo que evitassem criar histórias envolvendo porcos e salsichas. Ai, que grande escândalo! Ai, malditos muçulmanos (e judeus) que ameaçam a nossa liberdade!

Passo a vida a repetir isto: quando a esmola é grande o pobre desconfia. Mas as pessoas gostam é de se escandalizar muito, tenham ou não razão para isso (ora, detalhes sem importância). De modo que já vai por aí uma onda de preocupação por causa da fatwa contra a Miss Piggy e os Três Porquinhos.

A primeira coisa que me ocorreu foi perguntar-me como seria a minha própria reacção a um livro escrito numa cultura onde as cobras são animais de estimação. Será que eu compraria um livro de um menino que gostava muito da sua cobra, e dormia abraçado à cobra, e blablabla com a sua cobra, para ler aos meus filhos antes de eles adormecerem? Ou se o livro fosse escrito numa sociedade que usa excrementos humanos como quem usa mostarda (pronto, é só um exemplo de algo que nos mete nojo) - será que eu daria aos meus filhos livros dos "cinco" e dos "sete" escritos nessa cultura, incluindo as partes das sandochas?
Portanto: se me querem vender livros infantis, a mim, façam-nos com conteúdos que me sejam agradáveis. Caso contrário, não compro.

Foi o que a editora pensou: se queremos aproveitar os ganhos das economias de escala que a globalização permite, toca a fazer conteúdos que se possam vender em todos os países. Ninguém está a dizer que vão apagar a Miss Piggy do seu lugar de honra na cultura ocidental, mas apenas que quando fizerem novos livros que pretendam vender também em países de arreigadas tradições muçulmanas, seria melhor inventar outras figurinhas.

Um outro artigo explica isso muito bem, e põe-nos este espelho em frente dos olhos:

What concerns me most about today’s coverage is that it appears to focus almost entirely on the issue of pigs being “censored” because of Muslim sensibilities. Nobody’s talking about, for instance, the – in my view – bigger issue that (again for commercial reasons) writers are asked not to refer to evolution in reading scheme books because it will limit American sales.


9 comentários:

Vítor Lindegaard disse...

Um sítio onde as cobras são animais de estimação? Berlim! Tinha uma amiga berlinense chamada Michaela que tinha um pitão chamado Michael, a quem dava um porquinho-da-índia vivo duas vezes por mês, porque os pitões, dizia ela, não comem carne morta. Vi uma vez. Polvilhava o bicho com um pó amarelo, creio que eram vitaminas, antes de o pôr na jaula do pitão. Ele há coisas... Asseguraram-me várias vezes que, nos anos 20, foi moda ter cobras como animais de estimação e que, em cidades como Paris ou Berlim, houve muitas, mas nunca consegui confirmar essa história...

Helena Araújo disse...

Pronto! Faltava o Vítor para me deitar a lógica por terra... ;)

Essa história do porquinho da Índia também é complicada. Sempre que compro carne para dar ao Fox penso nisso: quantos animais têm de morrer para o meu viver?

Nunca tinha ouvido falar dessa moda de cobras. Na Califórnia parece que há malucos para tudo - para lobos (vi alguns lobos "domésticos"), para ursos, para sei lá o quê. Depois alguns fogem de casa, e andam perdidos pelos parques das cidades.

Rita Maria disse...

Não só as pessoas confundem o que pode ser dito com o que tem de ser dito (inocentemente ou de propósito, já li muitas vezes que se é proibido, tem de ser dito...é como a moda do politicamente incorreto como fonte de valor) como querem que as empresas e o capitalismo lhes tomem as dores.

Eu também gostava, mas tenho umas dores que acho que são prioritárias e que gostava de lhes por à consideração. Uns pormenores sobre trabalhadores, ambiente e assim.

Rita Maria disse...

(também conheci uma pessoa que tinha uma cobra e lhe dava hamsters e outros ratinhos que comprava vivos. Era horrível!)

Helena Araújo disse...

Olha olha, outra com "pick your fights"!
:)

Na história dos animais domésticos, tudo é horrível.
O Fox é do tamanho de uma ratazana, ou pouco maior, e eu decidi que o Fox é para ter uma vida de luxo e uma ratazana é para ser morta com um veneno que lhe rói as entranhas...

Mudando de assunto, ou melhor, voltando à vaca fria: e que me dizes de tirarem os "negerlein" da Pipi das Meias Altas e do Jim Knopf? E banir o Knecht Ruprecht da companhia do Nikolaus?

Mudando de assunto, para algo muito melhor: o teu texto sobre a Liberdade de Expressão é fabuloso. Não concordo com tudo (nem tenho de concordar), mas é fabuloso.

Rita Maria disse...

Essa das prioridades era uma piadinha...

As pessoas instauraram um sistema chamado capitalismo. Eu não acho muito jeitoso, mas há quem ache. E o capitalismo é como a liberdade de expressão, tem ali uns limitezinhos mas no mais é livre.

Uma das formas mais inócuas de as empresas fazerem uso desta liberdade é não fazerem produtos que acham que muita gente não vai querer comprar, qualquer que seja o motivo, para evitar perder dinheiro.

Assim à primeira vista, não me parece má ideia da parte delas.

Helena Araújo disse...

Em que parte das prioridades é que é para não levar a sério?
(triste vida - achei a frase bastante séria)

Fico mesmo espantada com as reacções a esta história dos porcos e das salsichas. Parece uma coisa tão óbvia e inócua. É isso, é o nome das marcas para não meterem água num país qualquer (como o Ascona...). Por exemplo.
Sendo muito mais grave a história do condicionamento devido aos cristãos que acreditam no criacionismo, porque é que há toda esta onda de repúdio contra os "malditos muçulmanos", e não há a mesma onda de repúdio contra os "malditos cristãos"?

Rita Maria disse...

Agora tenho pena de não dar para por aqui fotografias. O Lidl tem em promoção uns bombons chamados "Amidalas" :)

(não era a sério porque sei que não posso vergar as empresas à minha vontade e não acredito muito nessa luta, acredito mais em limites políticos - e por isso não acho que seja uma questão de prioridades, mas sim de princípio)(a mesma coisa com a educação nos EUA - o que é absurdo é politicamente uma teoria científica não ser dada da forma correta, e não o facto de as empresas não serem ativistas científicos)

Rita Maria disse...

(sobre o porquê da diferença - porque se assume os cristãos fundamentalistas americanos como uma curiosidade engraçada de gente burrinha que não tem de ser levada a sério, ninguém lhes imputa perigo nem vê neles "o outro". São burrinhos mas são nossos)