02 setembro 2014

rentrée


I. Já sem filhos na escola, a rentrée agora é apenas às andanças da Filarmonia. No sábado passado foi o concerto de abertura da temporada. Sentada nos bancos de pau, ouvindo o Rachmaninov (Danças sinfónicas) e vendo de frente o Simon Rattle a criar aquele prodígio de música imaterial, decidi: vou tentar não perder nenhum dos seus concertos até ele se ir embora.
Espero que se lembrem de instalar desumidificadores na sala. 

II. Música imaterial: quando se liberta dos instrumentos que a produzem, e brota perfeita e límpida, não das cordas e dos metais, mas da vontade.


III. No "pássaro de fogo" tocaram uma parte (penso que era a "Mort de Kastchei") em surdina. Para se intuir, em vez de ouvir. Nem todos gostaram (nomeadamente os que, ao contrário de mim, não estavam a um metro da orquestra). Já assisti a algo semelhante, no concerto de comemoração dos 60 anos do edifício, quando a Mitsuko Uchida tocou tão delicadamente que conseguíamos ouvir o respirar da sala. Não sei se gosto - mas gosto, definitivamente, de nesta sala se gozar a liberdade de experimentar coisas novas. 

IV. Secção revista "Pais e Filhos"
Ao meu lado estava um casal com um filho dos seus dez anos. O miúdo estava sentado na primeira fila, os pais na segunda. Quando a orquestra começou, o rapazinho virou-se para trás, todo contente, e exclamou "também sei tocar isto!". Para o acalmar, a mãe começou a massajar-lhe as costas. Ele protestou, bem alto: "não faças com tanta força!". A senhora ao lado dele fez-lhe "chiu!" e ele deve ter tido uma reacção alérgica, porque passou a peça toda a tossicar. No fim, quando a orquestra estava a abandonar a sala, o simpático dos tímpanos (este, que estava mesmo à nossa frente) disse aos pais que era boa ideia mudarem de lugar. A mãe perguntou: "porquê?"

(A mãe perguntou: "porquê?" A mãe perguntou: "porquê?" A mãe perguntou: "porquê?" A mãe perguntou: "porquê?" A mãe perguntou: "porquê?" A mãe perguntou: "porquê?")

O músico até se engasgou, mas conseguiu explicar: "porque com o barulho que faz os músicos não se conseguem concentrar". Optei por rir, para não desatar a bater no pai, no filho e naquela maravilha de mãe. Olhei para as pessoas dos blocos por trás de nós, e estavam todos com cara de poucos-amigos a observar a família. Trocámos reviradelas de olhos e sorrisos de chateados.
Um senhor que conheço das longas esperas para comprar os bilhetes nos bancos de pau - sim, fazemos filas de mais de uma hora para os conseguir - ao passar pelo miúdo, depois do intervalo, perguntou-lhe com um sorriso se ele iria aguentar o Pássaro de Fogo, porque tinha algumas partes muito selvagens. A família encolheu os ombros, e a mãe pediu a uma senhora que passasse para a frente, para o filho ficar ao lado dos pais. A senhora era baixinha, bem queria ficar atrás para ver melhor, mas lá se sacrificou em nome do bem-estar de todos. Pensávamos nós! O miúdo recomeçou com a tosse, com os suspiros, com a respiração pesada em pleno pianissimo. O pai mandava-o calar, e ele respondia indignado: "tenho de respirar!"
Foi assim o nosso Pássaro de Fogo: cof cof cof, suspiro, aaaaiiiiii, suspiro, cof cof cof. E para completar o arraial, a mãe tirou os sapatos, e volta e meia os pés batiam neles, poc poc, catrapum. Suspiro, cof cof.

Pergunto-me o que devia ter feito durante o intervalo. Como dizer a estes pais, que manifestamente não sabem o que é inaceitável numa sala destas, que não têm o direito de estragar o concerto a centenas de pessoas, e o trabalho daqueles músicos? Oh, teria milhentas possibilidades de dizer o que queria, desde a prestável sugestão "podem deixar o miúdo no porteiro e ir buscá-lo no fim do concerto", à manifestação de empatia "que pena que têm de ir para casa a meio do concerto..." passando pela humilhação "ó rapaz, tens consciência que está toda a gente a olhar para ti e a ver os teus caprichos, não apenas nesta sala, mas no mundo inteiro, porque o concerto está a ser transmitido em directo - não tens?"
Mas nenhuma dessas seria a frase que os faria avançar. E essa, ainda não encontrei. Aceitam-se sugestões.
(O que eu gostava, o que eu gostava mesmo, é que um dia destes o maestro interrompesse o concerto e mandasse sair quem não se sabe comportar bem dentro da sala. Já vi uma vez, por causa de um bebé que estava a palrar, e cuja mãe levou imenso tempo a perceber que aquela pausa no concerto lhe dizia respeito. Era preciso acontecer mais vezes, e num instante se curava a tuberculose galopante que costuma dar nos concertos, mais o tédio barulhento de certas crianças.)


Sem comentários: