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Este fim-de-semana falei com uma portuguesa, há muitos anos residente na Alemanha, que me contou sobre os tempos em que começaram a chegar compatriotas nossos para trabalhar neste país. Foi há menos de meio século, e alguns nem sabiam o que era luz eléctrica. Outros iam trabalhar com o cabelo cheio de piolhos, e inscreviam esse facto na ordem natural das coisas.
Essas histórias também são minhas: lembro-me perfeitamente de quando a minha avó pôs água canalizada em casa. Eu tinha seis ou sete anos. Até então, era a Bina - a criada de toda a vida, e também de certo modo pessoa da nossa família - que tinha como função ir buscar a água ao poço, ao fundo do quintal. E acender a lareira, para cozinhar e termos sempre água quente no pote. Nessa casa havia electricidade, mas à noite não podíamos ler na cama, porque era demasiado caro (muito caro, apesar de a minha avó ser uma das proprietárias mais ricas daquela terra). Estávamos proibidos de comer na casa dos vizinhos, porque - percebi mais tarde - eles passavam fome. Um dos meus irmãos contou que viu três miúdos disputarem uma cabeça de sardinha.
Aos dez anos, uns meses depois do 25 de Abril, fiz férias numa aldeia sem electricidade na região de Basto. Férias de luxo num solar, o meu momento "a cidade e as serras". Os lençóis de linho esticados numa enorme mesa de pedra, usando ferros aquecidos à boca do forno a lenha. Lembro-me bem do filho do caseiro que, ao ver o nosso entusiasmo para apanhar uma boleia no carro de bois, comentou: "as meninas gostam de andar no carro de bois, e eu gostava era de andar no carro do pai das meninas". Tinha a minha idade, não sei se ia à escola, mas dominava na perfeição a gramática do respeitinho - e nunca lhe deram essa boleia.
Aconteceu há 40 anos no país onde nasci.
Este fim-de-semana falei também com uma alemã que cresceu na RDA. Uma mulher nos seus quarenta anos. Contou-me que aos 15 era punk e resolveu provocar o regime, que proibia os punk de frequentar os mercados de Natal. Juntou-se um grupinho de adolescentes, e ala que se faz tarde para o mercado de Natal da Alexanderplatz. A polícia não demorou, arrastou-os brutalmente para um canto cheio de pinheirinhos, e levou-os em carrinhas para a esquadra. Seguiram-se 48 horas de interrogatório quase ininterrupto. Os interrogadores iam-se revezando, ela estava sozinha à mercê deles. Tinha 15 anos.
Durante dois dias praticamente nenhum dos interrogados dormiu, e a polícia não se deu sequer ao incómodo de avisar os pais daqueles miúdos sobre o seu paradeiro.
Aconteceu há 25 anos na cidade onde vivo.
A moral da história são perguntas: de que falamos quando dizemos que dantes é que se estava bem? estamos conscientes do que entretanto conseguimos conquistar? e estamos mesmo a fazer tudo o que está ao nosso alcance para que estas histórias não se repitam?
8 comentários:
Helena, pensei o que agora escreveste ontem, quando li uma entrevista ao Nicolau Breyner na qual ele fazia a apologia de como antes é que o mundo rural era bom. E podemos reduzir as datas que indicas em mais ou menos 10 anos; nos anos 80, nas minhas férias escolares, eu via o mesmo numa aldeia de Barcelos.
Às tantas ainda somos primos, Carlos...
Na aldeia da minha avó deixou de haver fome. E os miúdos que disputavam uma cabeça de sardinha apareceram anos mais tarde em brutos carros. Diz que foi a droga, mas eu não sei se é a inveja quem faz dizer.
Eh, eh, eh... Se não me engano, as aldeias ficam em sítios distintos do concelho (a da tua avó fica em direcção a Esposende/Viana, a da minha fica em direcção a Braga).
Na aldeia da minha avó, pelo menos, aparentemente, também já não há fome, nem tão-pouco crianças descalças, sujas e cheias de piolhos. Quanto aos brutos carros, também os vejo, mas parece-me que o fenómeno se deve mais às prioridades de cada um do que à droga (há quem faça uma vida de reclusão e tire à boca para poder ir tomar café num carrão aos Domingos -- opções).
Não é demais chamar a atenção para a verdadeira amnésia selectiva que toma conta do discurso "dantes é que era bom". Só era bom para muito poucos e "aguentável" para outros tantos. A maioria vivia muito mal. Tão mal que desassossegava quem, não vivendo muito mal, era capaz de reparar nessa circunstância. E, se começarmos a falar do ponto de vista das liberdades cívicas, também estamos conversados...
É verdade, Helena. Eu também me lembro de coisas desse género, e quando me dizem "temos de empobrecer, andamos a viver acima das nossas possibilidades", pergunto se é para essa pobreza que querem que voltemos.
Não podia estar mais de acordo. Ainda cheguei a ter de fazer as necessidades num balde, de visita à minha avó, na aldeia transmontana. Não dava jeito nenhum, era bem pequena, não conseguia fazer se não estivesse sentada e o bordo do balde era fininho. A alternativa era ir fazer à rua, pelo que lá me esforçava.
Tendemos a pensar que antigamente era melhor porque recordamos tempos em que éramos bem mais novos, com mais sonhos e ilusões. É só isso.
mdsol, nem mais.
Gi, andávamos a gastar mais do que conseguimos pagar. A questão é: quem é que andava a viver acima das nossas possibilidades? Talvez não fosse o Estado Social, mas o BPN e o lobby do betão.
Cristina, na casa da minha avó não era balde, era penico. Da Vista Alegre, hehehe. Um autêntico caso de necessidades acima das possibilidades... ;-)
Agora que me dizes isso, pergunto-me porque não usávamos penico. Não haveria? Lembro-me que os meus outros avós tinham penico, mas, em Trás-os-Montes, não me lembro de ver nenhum... Nesse caso, porque não se lembravam os meus pais de levar para lá uns penicos?
Enfim, era bastante pequena, já não sei pormenores. Mas lembro-me do balde! Depois, havia uma casa-de-banho com sanita, lavatório e chuveiro, construída com a ajuda monetária dos filhos. Era bastante primitiva e sem água quente (às vezes, sem água nenhuma), mas, enfim, sempre era alguma coisa... ;)
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