11 fevereiro 2014

concerning violence



Concerning Violence é uma aula, e assume-o sem complexos desde o princípio. Começa com uma professora universitária, afundada no meio dos livros do seu gabinete, a ler a introdução que escreveu para este tema:

Frantz Fanon was born on the Caribbean island of Martinique in 1925, and grew up a gentleman of the French Empire. He realized, when he came from the island of Martinique to the mainland of France in Europe, through involvement in the French army elsewhere, that his class privilege among his own black people did not mean anything in the country of the colonizing masters - he was nothing but a black man. In a famous chapter in his book Black Skin, White Masks (rejected as a dissertation by a French university), he mentions his shock when a white French child cries out to her mother - "Mama, see the Negro!" But Fanon moves from just this shock into an attempt to understand colonization all over the world.

Concerning Violence é um documentário "em nove cenas sobre a autodefesa contra o imperialismo". Usa filmagens feitas em África por equipas suecas, entre 1966 e 1984, e inscreve sobre elas frases de Os Condenados da Terra - o livro que Frantz Fanon escreveu em 10 dias, já com a morte à vista.
O resultado é um filme que não apenas nos conduz o olhar a partir da crueza das reportagens em África, mas lhe acrescenta a exigência intelectual de um psiquiatra que expõe as relações do colonialismo e as feridas que deixam nos povos ocupados. No final, repete o desafio que Fanon dirige a África, e em boa verdade também a nós:

Come comrades, the European game is finally over; we must look for something else. We can do anything today provided we do not ape Europe, provided we are not obsessed with catching up with Europe. Europe has gained such a mad and reckless momentum that it has lost control and reason and is heading at dizzying speed towards the brink from which we would be advised to remove ourselves as quickly as possible.
(...)
If we want to turn Africa into a new Europe, let us leave the destiny of our countries to Europeans. They will know how to do it better than the most gifted among us. But if we want humanity to advance a step further, if we want to bring it up to a different level than that which Europe has shown, then we must invent and we must make discoveries. For Europe, for ourselves, and for humanity, comrades, we must turn over a new leaf, we must work out new concepts, and try to set afoot a new human being.

Numa das cenas mostra-se uma resposta possível a este desafio, a partir de uma entrevista com Thomas Sankara. O então Presidente do Burkina Faso critica as ajudas do FMI ("vêm, ajudam-te, e depois vão impondo cada vez mais condições que só pioram as coisas") e as ajudas humanitárias ("não precisamos que mandem para cá os vossos excedentes agrícolas. Se o fizerem, os nossos agricultores deixam de poder vender o que produzem. O que precisamos é que nos dêem sementes, insecticidas, arados."). O narrador remata secamente: poucos meses depois foi afastado, com a ajuda da França e dos EUA.

Em "Esta pobreza de espírito" (Fanon: Native society is not simply described as a society lacking of values. The native is declared insensive to ethics; he represents not only the absention of values, but also the negation of values.) aparece um casal de missionários suecos incapaz de dizer em que parte da Bíblia se proíbe a poligamia - e nesse impasse hilariante revela-se a incompetência de agentes de ocupação espiritual que impõem em vez de dialogar.



Várias das nove cenas são feitas com material filmado em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Numa delas vêem-se mulheres Maconde entoando em coro uma canção sobre o Kaúlza de Arriaga, e noutra, "Derrota", há imagens tocantes de soldados portugueses em estado de choque perante os ferimentos graves de um deles (só por esses rostos já valia a pena ver o filme), enquanto ouvimos a canção O Desertor, de Luís Cília.

Durante a conversa do público com o realizador, Göran Hugo Olsson, fala-se dessa cena, e da decisão de apresentar o soldado colonizador como vítima. O jornalista que fez as filmagens foi peremptório: eram uns pobres rapazes das aldeias, obrigados a ir fazer aquela guerra que ninguém queria. Não há dúvida, concluo eu muito caladinha na minha cadeira: sempre diferentes, os portugueses - até na Suécia já constou que nós cá é só vítimas e brandos costumes.
Alguém do público encomendou o próximo filme: um tema mais próximo do nosso tempo e do nosso espaço geográfico - por exemplo, os soldados que matam imigrantes ilegais quando tentam entrar na fortaleza Europa. O realizador lembrou uma das cenas do filme, com o título "Matérias Primas", e comentou: se os países ricos deixassem África usar as suas matérias-primas, já podiam abrir as fronteiras, pois não correriam grandes riscos de ser invadidos por pobres. Lembrei-me logo da Isabel dos Santos, mas não me apeteceu remar sozinha contra a corrente de bom entendimento e má consciência que ia por aquela sala.

O Fanon faria agora 80 anos. Que diria ele hoje sobre os caminhos que se vão inventando em África?

**

Este filme devia ser mostrado e debatido em Portugal - não apenas pelo interesse histórico das imagens recolhidas por terceiros, mas também por levar a questão do colonialismo para uma análise exterior e mais ampla que a nossa habitual análise, relativamente condicionada pelo facto de sermos parte envolvida. Teria muito interesse convidar para o debate o jornalista que recolheu parte significativa daquele material.


Sem comentários: