Ao fim de 25 anos a fazer sucessivos cursos de esqui (sempre o mesmo: o dos principiantes) cheguei à conclusão que talvez fosse boa ideia mudar de vida. Esqui de fundo, aqui vou eu.
Arranjei um professor que passou hora e meia a dizer "você anda no exército? porque é que está tão direita? não se faça de robot, vá, avance normalmente" e outras delicadezas do género. Eu ria-me, e tentava fazer de conta que era humana, mas só disfarçava por alguns minutos.
Fartei-me de cair. Bastava-me ver uma descida, e ainda antes de começar a escorregar já estava catrapum, para que conste que sou uma pessoa muito dada à proactividade. Comecei logo a imaginar-me numa cadeira de rodas supersónica a entrar pela chancelaria adentro. Mas não parti nenhum ossinho, pelo que ainda não foi desta que comecei uma brilhante carreira política. No que diz respeito a esqui de fundo, só experimento de novo numa pista que seja sempre a subir, ou então apenas plana.
Em compensação, fiz uma bela caminhada com raquetes de neve. Parece-me que descobri finalmente, ao fim de 25 anos, uma actividade de férias na neve que me dá realmente prazer.
O Joachim ficou muito aliviado: gosta imenso de passar uma semana a meio do Inverno a fazer exercício ao ar livre, e a minha aversão aos esquis estragava um bocadinho o esquema. E eu descobri, ao fim deste tempo todo, que sou um bocado pateta: como é que andei metade da minha vida a tentar gostar do que não gosto, só para ficar melhor na fotografia da família?
A verdade é que nem preciso de esquis, nem de raquetes: arranjei umas botas fantásticas, com spikes de ponta-e-mola (quer dizer: normalmente estão escondidos na sola, mas quando são precisos é só virar o suporte, e ali estão eles prontos para me salvar a vida a cada passo que dou), e passeei imenso pelas pistas e florestas cobertas de neve.
O guia que nos levou a explorar as encostas de neve funda em raquetes de neve levou chá de sabugueiro e um vinho doce da região, feito com uvas vindimadas no princípio do Inverno, e fartou-se de contar histórias engraçadas sobre raposas bêbedas a gemer pelo meio das vinhas, confusões de nomes que acontecem aos funcionários estatais que não falam bem a língua do cantão, e outras trapalhadas do género. Apontou para uma carecada no monte e disse que foi um pirómano da aldeia que incendiou a floresta, e que foi preciso gastar muitos milhões para fazer artificialmente o que a floresta faz com tanta naturalidade: evitar as avalanches, reter a água, evitar a erosão. Também nos mostrou barragens que as aldeias souberam usar para enriquecer, e falou sobre a empresa Ricola que compra toda a produção de ervas aromáticas biológicas daquela região para fazer os seus rebuçados. Pelas entrelinhas do que dizia passava-me a ideia de uma economia feita de pequenas coisas sólidas, e de autarquias e populações que sabem lutar para melhorar a sua qualidade de vida.
A encosta do monte que ardeu é esta mancha branca atrás da aldeia, no canto esquerdo da fotografia:
No restaurante da pista onde o Joachim parava todos os dias havia duas angolanas, uma delas crescida em Lisboa. Disse-me que o meu marido fala melhor português do que eu, por isso nunca mais lá voltei. No último dia o Joachim e os nossos amigos regressaram ao apartamento na aldeia todos alegres, e traziam três garrafas de vinho que as angolanas lhes tinham oferecido. No período quente, quando os restaurantes das pistas estão fechados, elas vão trabalhar para o vinho nos terraços junto ao vale. Têm dois empregos, consoante a estação.
O mesmo se passa com o meu professor de esqui de fundo. É co-proprietário da escola de esqui, e no Verão trabalha no vinho. Agora vai-se reformar, e é um português quem o vai substituir na viticultura.
Algo me diz que daqui a uns anos vou passear em raquetes de neve por aquelas encostas, e o guia vai contar histórias divertidas de raposas bêbedas, e vai falar francês com um ligeiro sotaque português.
1 comentário:
Com botas dessas talvez também me apanhem lá um dia.
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