15 outubro 2013

"nós"

(foto)

Tenho uma amiga que dá aulas num bairro berlinense onde há muitos turcos e árabes. Um bairro onde vivem pessoas com tradições e valores bastante diferentes daquilo que se considera básico na Alemanha. Há dias, um professor que dá aulas de religião muçulmana na mesma escola dizia à minha amiga - e estava a falar a sério - que todas as mulheres devem usar hijab ou tchador, porque é sua obrigação esconderem o corpo de forma a não provocarem os homens. Este homem tem passaporte alemão, e é pago pelo Estado alemão para dar aulas numa escola pública, o que implica um compromisso com os valores fundamentais da sociedade alemã.
Em conversa com um grupo de alemães, a minha amiga dizia que lhe custa incluir num "nós, alemães" uma pessoa que tem valores tão anacrónicos para esta sociedade. Alguém retorquiu que também temos dificuldades em incluir os neonazis num "nós, alemães", e nem por isso lhes é retirada a nacionalidade.

Ando a pensar nisso, e uso hoje o blogue como folha de apontamentos:

Em que se deve basear a nacionalidade? Quem manda nos valores considerados normais num país? Um país deve exigir dos seus imigrantes a aceitação de valores considerados básicos? (chegada a este ponto, lembro a discussão sobre o exame para obter a nacionalidade alemã - um político dos Verdes comentou que as questões relativas aos homossexuais provavelmente fariam com que o Ratzinger chumbasse nesse exame...)

Se ninguém pensa em tirar a nacionalidade alemã a um neonazi, porquê esse impulso para a recusar a um filho de imigrantes turcos, se ele assediar mulheres ou perseguir homossexuais, ou se for delinquente? Inversamente: se este Estado não tem problema nenhum em vigiar e proibir certas actividades dos neonazis, porquê tanto respeito por regras de outras culturas que vão contra princípios fundamentais desta sociedade?

(Lembro por exemplo a tragédia de uma miúda cujo destino estava inteiramente decidido pelos pais, e que pedia ajuda na escola - o único espaço de liberdade que lhe restava. Para não terem sarilhos com os pais, os professores aceitavam tudo o que estes impunham: a miúda não saía em passeios da escola nem participava nas aulas de desporto. Acabou casada à força com um desconhecido de uma aldeia da Turquia, debaixo das barbas dos professores alemães que preferiam não saber demasiado sobre o que estava a acontecer.)

Depois lembro-me do lamento de um turco: "tento integrar-me o mais possível mas, por mais que faça, não me aceitam". E os judeus, que se integraram de tal modo que até mudaram de religião, e nem assim conseguiram ser aceites. E não estou a falar só dos alemães, mas de todos os povos europeus que não pareceram muito incomodados quando assistiam às prisões e deportações de judeus.

Como é que se constrói o "nós"? Será que o "nós" é apenas um instrumento para construir a gaveta do "eles"?

(E depois, - eu a descobrir o ovo de Colombo com o atraso do costume - uma pessoa que põe a hipótese de negar a nacionalidade a alguém, devido a determinadas opiniões incompatíveis com os usos e valores do país, também corre o risco de estar a ter uma opinião incompatível com os valores do país.)

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Falei da Alemanha. Como se traduz isso para o "nós" português? Honestamente: como estamos de ciganos? de imigrantes de Leste? de pessoas com pele escura?


8 comentários:

Alter Ego disse...

Creio que o maior problema é que nos ensinam ( os pais, a sociedade e creio que me deram essa noção em aulas de filosofia - não fossem os restantes não estarem a fazer o trabalho devido) que a nossa liberdade acaba quando começa a dos outros. E essa linha é muito ténue no que diz respeito a assuntos étnicos... até que ponto nos podemos envolver? ou queremos o que daí advém?
Até que ponto não temos direito à nossa opinião por muito absurda que pareça aos outros?

Luís Novaes Tito disse...

Já que isto é um interrogatório introspectivo e para meu guia venho só perguntar se no último parágrafo se está a referir aos "ciganos" e às "pessoas de pele escura" portuguesas ou estrangeiras?

Estas coisas dos "nós" são sempre muuuitoo complicadas, raios! Por exemplo, o nó que deram na corda oferecida a Saddam Hussein como prémio de uma vida que deixou de servir aos interesses dos invasores, custou-lhe a vida.

E lembro-me sempre do nó na garganta daquele tipo branco (de pele rosada), simpático, que perguntava ao miudo preto (de pele escura)de que terra (País) era e ficou engasgado quando o miúdo lhe respondeu que era da mesma terra que ele.
Alfacinha de gema, logo um outro "nós".

Helena Araújo disse...

Alter Ego,
e quando a opinião dos outros limita a minha liberdade?
A questão da coexistência de culturas e valores diferentes num mesmo espaço geográfico é muito complicada. Como o caso da miúda alemã, obrigada a um casamento combinado pelos pais. Nem sei se isso é legal na Turquia, mas na Alemanha é claramente ilegal. Contudo, em nome da preguiça e do politicamente correcto, a escola da miúda fez questão de fechar os olhos a este problema.
Em todo o caso: em sociedade, estamos em permanente negociação. E as opiniões que actuam sobre a esfera de liberdade dos outros são obviamente ainda mais debatidas e negociadas.

Helena Araújo disse...

Luís,
no fundo, são sempre um bocadinho estrangeiros, não é? Por muitas gerações com passaporte português que tenham...
Felizes os que nascem com "cara de português": ninguém lhes perguntará de que país são. E podem ser alemães, como os meus filhos. Se ficarem caladinhos, ninguém repara. ;-)

Luís Novaes Tito disse...

Helena,
Não me parece uma questão de passaporte. Não estamos a reflectir sobre aquisição de nacionalidade mas sim de "nós" de gema. A cara de português do Costa, ou a cara de americano do Obama, até os fez guinar a chefes dos caras pálidos.

Isto de ter sido assessor do Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas deixou-me sempre estas marcas dos "nós" iguais na diversidade.

E depois olho aqui à minha volta e vejo celtas com cara de portugueses do Minho, árabes com cara de portugueses do Algarve, turcos com cara de portugueses do Governo...

Helena Araújo disse...

Luís,
o Obama chegou a presidente apesar da cor da pele. Ainda agora há muito americano que se ofende com esse sacrilégio do poder tomado por "eles". Pergunto-me até se o processo que levou ao actual shut down americano não se explicará em parte por um visceral racismo de alguns.

Admito que em Portugal se seja um pouco mais inclusivo, no que diz respeito aos tons da pele, mas mesmo assim pergunto: quantos deputados com "forte pigmentação" há no Parlamento português? (estou com preguiça de ir contar quantos deputados com nome turco ou polaco há no Parlamento alemão, mas olhe que é uma percentagem considerável - tendo em conta, no caso especial da Turquia, que a imigração começou apenas há 50 anos, e que foram pessoas das classes mais baixas que vieram para a Alemanha).

Parece-me muito mais fácil pensar um "nós, humanos" que um "nós, portugueses". Talvez fosse uma grande ajuda para o país se todos pudessemos ser assessor do Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas. Bem sei que não é possível, mas com certeza ajudava a mudar as mentalidades.

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...



Claro, Helena.

E não precisas de ir logo à Assembl. da Rep., começa por perguntar: quantos pretos são simples membros de Assembleia de Freguesia, já para não dizer Presidentes de Junta, ou mesmo Vereadores, em Portugal?

E estou a falar da Brandoa, de Camarate, de Corroios e do Casal de S. Brás, nem sequer de Alcabideche, ou de Caxias (onde, aliás, também poderiam sê-lo...)!

E ninguém fala deste tema, nunca, em Portugal.

Helena Araújo disse...

E quando fala, é numa de "somos tudo boa gente" (diferentes de todos os outros povos colonizadores). Às vezes quase me sinto tentada a acreditar nisso, mas depois lembro-me de ter andado a procurar um restaurante com uma amiga de pele escura, casada com um branco, e de ser ele a entrar nos restaurantes a ver se havia mesa, porque se fosse ela a perguntar era mais provável que não tivessem. :(