28 outubro 2013

geração de charneira


Era dia de São João e estávamos a comer sardinhas num belo terraço sobre o Douro, no meio de alegre confusão. Gritei uma frase em alemão para o meu filho, sentado do outro lado da mesa enorme. Uma amiga, ao meu lado, comentou a brincar: “Já te desmascaraste. Logo agora, que isto estava a correr tão bem”.  No café da nossa aldeia, no Minho, o meu marido é conhecido como “o doutor alemão”. Mas este ano, por um curioso lapso a que se juntou o humor, passaram a chamar-lhe “o inglês”. O nosso cão, esse, rapidamente ganhou o cognome “o boche”, devido às suas tentativas de se afirmar no grupo dos cães da quinta. 
E quando eu contei ao balcão da loja da terra o que me custou desfazer um ninho com cinco passarinhos que estava dentro do nosso esquentador e, perante a indiferença das pessoas (“oh, pássaros há muitos, deixe lá!”), insistia na cena de cortar o coração que era aqueles bicos tão abertos a pedir comida à mãe, o meu filho pediu-me discretamente que não continuasse a conversa – porque já parecia “os alemães que vêm para cá dar lições”.
É tudo a brincar, é tudo entre amigos – mas a verdade é que este ano houve algo diferente nas nossas férias em Portugal. Perante o ressentimento que as pessoas mostravam ter em relação à Alemanha e aos alemães, experimentámos algum desconforto e uma culpa difusa. Sentíamos que algo nos separava dos outros portugueses. Que responder quando esperam de nós uma tomada de posição primária, sem margem para outras perspectivas? E como conversar com pessoas que estão cheias de medo do futuro, e traduzem a angústia e a impotência em frases insultuosas  contra o povo que é também o dos meus filhos e marido?
Ouvi muitos portugueses que, sem se darem conta da ironia, falavam dos alemães como os nazis falavam dos judeus: um povo racista, perigoso e incorrigível, com uma estratégia deliberada para dominar as nações. As conversas acabavam frequentemente no mesmo beco sem saída: “os alemães querem mandar nisto tudo, e nós não temos como nos defender”.
Até que um dia, quando mais uma vez alguém lembrava o Plano Marshall, exigindo que a Alemanha “perdoasse como lhe perdoaram” e que “pagasse o que deve aos outros países”, uma professora de História entrou na conversa e confrontou-nos com questões fundamentais:  Que valor damos aos tratados celebrados entre os países? Somos capazes de encerrar determinados capítulos da História, ou queremos realmente fazer contas às dívidas antigas? Nesse caso, convém saber que não são só os alemães – também se pode falar do que a URSS fez na RDA ou, bem mais perto de nós, o ouro que a África do Sul pagou a Portugal por conta do trabalho dos emigrantes moçambicanos, o ouro que os portugueses trouxeram do Brasil, os escravos que levaram para lá, as perseguições aos judeus, e por aí fora até à Batalha de São Mamede. Lembrou ainda o Tratado de Versalhes e o sadismo de o fazer assinar na Sala dos Espelhos, bem como as dívidas acordadas nesse Tratado e impossíveis de pagar, que acabaram por conduzir à Segunda Guerra Mundial; o grau de destruição da Alemanha no fim da guerra; o Plano Marshall, generosamente pago pelos americanos para romper com a lógica perversa do “olho por olho, dente por dente”, e do qual Portugal – que nem tinha entrado na guerra – também beneficiou. Rematou a sua intervenção com um alerta: os passos que as pessoas e as nações começaram a dar na direcção da Paz, no fim da Segunda Guerra Mundial, estão a perder a força. Nós somos uma geração de charneira: está nas nossas mãos continuar o processo de Paz na Europa, ou entrar numa dinâmica que nos levará de volta a um passado que ninguém quer.
Tenho pensado muito nisso: está nas nossas mãos - somos uma geração de charneira.
Que caminho queremos escolher? O que é que cada um de nós pode fazer? O que é que eu vou fazer?

Não tenho todo o poder, mas tenho algum. Desde já, o poder de escolher as palavras que uso para falar dos problemas e dos outros povos. O poder de recusar discursos em que algum povo é diabolizado ou desprezado (como “os alemães imperialistas” ou “os gregos corruptos”). O poder de me informar, de debater e participar. O poder de semear, incansavelmente, pequenos gestos de Paz. Porque os nossos gestos dão sempre fruto, e cabe a cada um de nós decidir que frutos quer semear na Europa.  

(texto publicado no jornal Portugal Post, em Agosto de 2013)

13 comentários:

Nan disse...

Olho por olho e dente por dente, acho que foi Ghandi que disse, acabaremos todos cegos e desdentados. As pessoas andam zangadas e somos todos como o puto que leva um estalo do pai e vai dar um pontapé ao gato. Quando queremos que alguém tenha a culpa do que nos faz mal, atiramo-nos a quem está à mão. É maldade, bem sei, mas geralmente não é por mal.

Gi disse...

Muito bom, Helena.

Eduardo Pereira disse...

Há um velho slogan que proclama: "nem guerra entre os povos, nem paz entre as classes". Nas convulsões que torturam a Europa, há vencedores e vencidos. As divisórias que separam uns de outros não são as fronteiras nacionais, mas são bem reais. Será possível recusar a guerra entre os povos sem recusar a paz entre as classes? Creio que não. Creio mesmo que entender a natureza oligárquica do poder é indispensável. Recusar a paz entre as classes poderá ser a única forma de garantir a paz entre os povos.

Ant.º das Neves Castanho disse...



É inacreditável como se volta a ter de falar de Nações numa Europa que, ainda há poucos anos, se pretendia acima de tudo construir a partir de Cidadãos.


Isto em si constitui o verdadeiro retrocesso. O retrocesso crucial e gerador de todos os retrocessos e destruições que já se antenvêem.

Cristina Torrão disse...

Infelizmente, a memória é curta. Despreza-se muito o estudo da História. E eu já digo lá no meu estaminé: entender a História é entender melhor a natureza humana.

;-)

Nan disse...

Este último comentário deixou-me a pensar: os nossos actuais governantes são da área das engenharias, ou economistas, (quase) não estudaram História, ou Filosofia ou Literatura. Se calhar isso também explica muita coisa. Digo eu...

Helena Araújo disse...

Desculpem, passei uma semana bastante longe da internet, e só agora volto aqui.

Nan,
não sendo por maldade, é um reflexo que faz mal. Temos de encontrar outras maneiras.
Quanto à questão da História: sim, parece-me que um dos problemas graves é a falta de formação sólida na área da História e da Filosofia. Mas não é só um problema dos políticos. Estamos todos cada vez mais conversadores de café...

Cristina,
isso mesmo.

Eduardo,
esse comentário lembrou-me a mensagem de uns membros do attac grego em Berlim, há uns anos: "atenção, isto não é um problema entre os países europeus! isto é um problema entre os pobres e os ricos."
Mas será mesmo preciso falar em recusar a paz entre as classes?
Não basta exigirmos uma distribuição mais equitativa da riqueza?
Olho para a Escandinávia, e pergunto-me se eles chegaram àquele estado de bem-estar geral por meio de um discurso desses ("recusar a paz entre as classes") ou por uma conquista pacífica baseada numa lógica mais igualitária aceite por todos.

Helena Araújo disse...

António das Neves Castanho,
curiosamente, na Alemanha não se fala assim. Continuam a acreditar e a apostar na Europa, mesmo conhecendo os riscos e o preço.

Nan disse...

A paz entre as classes é uma volta complicada de dar. São precisos muitos pobres para fazer um rico. Aliás, ser rico só é bom porque há pobres. Alguma da satisfação que se lê e ouve na imprensa a respeito da crise vem daí...

Helena Araújo disse...

Nan, agora lembraste-me duas coisas:
- O Konstantin Wecker num concerto a dizer exactamente isso: "só tu és rico porque nós somos pobres";
- Um artigo que li ontem, que diz que a reforma de menos de 400 deputados custa mais do que o conjunto de todas as reformas mínimas (270 euros) em Portugal.

Um bom caminho para a paz entre as classes era não haver uma grande diferença entre o mínimo e o máximo (salários e reformas). Acredito que isso seja possível (embora já tenha sido mais fácil do que é) e que o caminho que aí leva não é uma retórica de "luta de classes" mas de "distribuição equilibrada da riqueza - não apenas por motivos éticos, mas até numa mera lógica económica".

Conde de Oeiras e Mq de Pombal disse...



Helena,

acredito que sim, mas infelizmente tenho a sensação de que a Europa, essa, é que já não acredita nem aposta na Alemanha, nem no Euro.

Helena Araújo disse...

De que Europa estás a falar? Da Polónia? Da França? Da Estónia? De Portugal?
Há muitas realidades dentro daquilo a que se chama Europa.
Falando de cada país: sem Alemanha e sem euro, qual é o plano B deles? Portugal, por exemplo: o que é que ganha se optar por uma atitude de maldizer a Alemanha e os alemães, e resolver ir pelo orgulhosamente sós? Os portugueses ficam melhor ou pior?

Ant.º das Neves Castanho disse...



Falo de Portugal, mas também da Espanha, da Grécia, da Irlanda, da Itália, até da França. Já para não falar do óbvio Reino Unido.

E não falo de "maldizer" a Alemanha - o que é isso? -, mas sim de a deixar seguir o seu caminho. Com quem a quiser (e puder) acompanhar, claro.


E os outros Países não ficam "sós", ficam como estavam antes do Euro. Como está a Hungria e mais outros dez.


Melhor ou pior, os portuguese? Não sei. Depende sobretudo dos governantes que escolherem, não de estarem ou não atrelados à Alemanha. Que comprovadamente teve vantagens e desvantagens, mas desfasadas no tempo - aquelas mais no início, estas qgora no fim.

E são por isso as que deixarão a sensação mais forte...